Pular para o conteúdo principal

O canto dos XXVII seminários de Lacan


O CANTO DOS SEMINÁRIOS DE LACAN
Nasce uma voz na Paris do pós-guerra. Um eco distinto, vindo da clínica, da literatura, da matemática e da linguagem. Jacques Lacan se ergue como um alquimista do inconsciente. O palco se arma, e em 1953, o Seminário I inaugura a travessia: Os Escritos Técnicos de Freud. Ali, Lacan retoma o texto freudiano como escritura viva. O inconsciente é estruturado como uma linguagem. A transferência, o sujeito, o Outro. Tudo se desenha sob o olhar da palavra.

Segue o Seminário II. O Eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Lacan desfaz o espelho onde o ego se fixa. Mostra que o eu não é senhor, mas efeito. O sujeito é fendido, dividido, deslizando no campo do significante. O real escapa. O simbólico estrutura. O imaginário engana.

No Seminário III, sobre As Psicoses, Lacan coloca a foraclusão no centro da clínica. O Nome-do-Pai recusado. O sujeito psicótico em confronto com o real sem o amparo do simbólico. Schreber é lido como poesia delirante do Outro em colapso. A linguagem se implode e se recria em cada frase insana.

Chega o Seminário IV: A Relação de Objeto. O objeto não é coisa. É falta. É causa do desejo. Surge o conceito de objeto a. Objeto do olhar, da voz, do seio, das fezes. Fragmentos que nos faltam e nos movem. O desejo não visa a completude. Deseja porque falta.

No Seminário V, As Formações do Inconsciente, o sonho é lido como metáfora. O chiste como metonímia. O inconsciente como linguagem. O sujeito se escreve em equívocos. A verdade se insinua no erro. O saber escorre pelas bordas da fala.

O Seminário VI, O Desejo e sua Interpretação, é uma ode à leitura. Hamlet se ergue como figura trágica do desejo paralisado. O analista é aquele que não interpreta o sentido, mas o corte. A interpretação é ato que toca o real, não explicação.

Em seguida, A Ética da Psicanálise. Seminário VII. Lacan nos conduz por Antígona e Kant, Sade e o gozo. O bem não guia a psicanálise. O desejo sim. E o desejo é ético. A ética da psicanálise é sustentar o desejo até o fim. Mesmo que o fim seja a morte.

Chega o Seminário VIII, A Transferência. Sócrates e Alcibíades dançam o drama do amor transferencial. O analista é semblante de objeto a. Ele não é amado. Ele sustenta o lugar da falta. A transferência é uma armadilha, mas também é motor. Amar é dar o que não se tem a quem não o é.

O Seminário IX, A Identificação, nos leva ao traço unário. O significante que marca o corpo. O Ideal do Eu como construção imaginária. O sujeito se identifica ao significante, mas paga o preço com o recalque. A castração funda o laço. O Um é ficção.

Então, A Angústia. Seminário X. A angústia não engana. Ela é sinal do real. O objeto a aparece ali onde o desejo falha. A angústia mostra o que não pode ser simbolizado. O analista, nesse ponto, é causa e não sujeito. Ele sustenta o ponto de horror, de furo. O objeto a é aquilo que se perde e se reencontra no sintoma.

No Seminário XI, Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise, Lacan crava pilares: inconsciente, transferência, repetição e pulsão. O inconsciente é efeito do significante. A transferência é presença do amor. A repetição retorna no fracasso. A pulsão contorna o objeto a. O corte aparece como momento-chave. O olhar é pulsional. O sujeito é furo.

O Seminário XII, Problemas Cruciais para a Psicanálise, desdobra o sentido, o gozo, a interpretação. A linguagem é armadilha. O saber do analista é não saber. A clínica se torna topológica. O simbólico se enrosca no real. O saber do sujeito é saber suposto.

No Seminário XIII, O Objeto da Psicanálise, Lacan mergulha no ser. O ser de gozo, o ser falante. O sujeito se forma na falta. A linguagem precede o ser. O objeto a é resto, resíduo de gozo. O analista é aquele que se deixa cair como objeto.

Chega o Seminário XIV, A Lógica do Fantasma. O sujeito barrado e o objeto a formam o fantasma: Fantasia fundamental que sustenta o desejo. O fantasma é defesa, mas também janela. É onde o sujeito se vê, se goza, se perde.

O Seminário XV, O Ato Psicanalítico, é performance ética. O analista não interpreta. Ele age. O ato é o que muda o sujeito. Não há ato sem corte. Sem furo. O ato funda um novo ser. O analista não é espectador. Ele é instrumento.

Em O Avesso da Psicanálise, Seminário XVI, Lacan desenha os quatro discursos: do Mestre, do Universitário, da Histeria e do Analista. O analista não ensina. Ele encarna a divisão do sujeito. O saber se desloca. O gozo circula. A verdade falta.

O Seminário XVII, O Saber do Analista, insiste que o analista não sabe. Ele sustenta o não-saber. O saber está no inconsciente. O inconsciente fala, mas não diz. A escuta é política. É ação. A interpretação é corte.

Em seguida, De Um Outro ao outro. Seminário XVIII. Lacan trabalha o significante, o gozo, a letra. O Outro não é mais lugar garantido. O Outro falha. E o sujeito se confronta com esse buraco. A letra fura o sentido. O real aparece.

O Seminário XIX, ... ou Pior, afirma que o sentido é gozo. Que o sujeito goza de não entender. A fala é gozo. O equívoco é estrutura. O sintoma é leitura possível do impossível. Lacan aponta para o sinthoma como novo laço.

No Seminário XX, Mais, Ainda. O gozo feminino é desmedido. Não-todo. Não se inscreve no fálico. A mulher não existe como universal. O gozo feminino é Outro. Não é falta. É excesso. E isso escapa à lógica fálica. A sexualidade é equívoca. O corpo é letra.

O Seminário XXI, Les Non-Dupes Errent, mostra que quem não se deixa enganar pelo semblante se perde. O semblante é necessário. O analista o encarna. Mas sabe que é máscara. O real se diz na fissura da encenação.

No Seminário XXII, RSI, os três registros se amarram: Real, Simbólico e Imaginário. O nó borromeano aparece. Se um se solta, tudo desmorona. O sinthoma surge como quarto elo que amarra o sujeito à linguagem, ao corpo, ao gozo.

O Sinthoma, Seminário XXIII, é Joyce. Lacan lê o escritor como aquele que suplanta o Nome-do-Pai com a escrita. O sinthoma é solução singular. É obra. É amarra. Cada um inventa seu modo de não enlouquecer.

No Seminário XXIV, L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre, a palavra falha se faz poema. O lapsus é verdade. A língua goza. O inconsciente se escreve. A letra é carne. A interpretação é poesia.

O Seminário XXV, O Momento de Concluir, mostra que a análise não termina no saber. Termina no sinthoma. No que não muda. O sujeito não se cura. Se reconhece. Se suporta. O fim da análise é um começo.

No Seminário XXVI, Topologia e Tempo, Lacan enrosca o tempo no toro, no nó, no corpo. O tempo não é linear. O desejo tem seu tempo lógico. O sujeito salta. O instante do olhar, o tempo de compreender, o momento de concluir.

E no Seminário XXVII, A Dissolução, Lacan desfaz a Escola. Um ato. Um corte. Não há psicanálise sem ética. Sem furo. Sem real. A Escola morre para que o desejo viva. O analista se autoriza de si mesmo. A psicanálise não se institui. Se encarna.

Esse é o percurso. Uma Odisséia pela fala, pelo corpo, pelo gozo e pela letra. Lacan não nos dá respostas. Nos deixa furos. Nos entrega mapas em forma de espiral. Seus seminários não são doutrina. São trilhas para quem ousa desejar.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Kierkegaard: O Filósofo da Angústia e da Liberdade

O Pensador que Desnudou a Existência No português do Brasil, a pronúncia mais comum e aceita do nome do filósofo Søren Kierkegaard é:  “Sôren Quírquegaard” Søren : o “ø” dinamarquês soa como o “ô” fechado, então vira “Sô-ren”. Kierkegaard : costuma ser simplificado para “Quírquegaard” (o “d” final geralmente não é pronunciado, porque no dinamarquês original é quase mudo). Na Dinamarca, a pronúncia é bem diferente, algo como “Sôrren Kiérkegô” , mas no Brasil a adaptação fonética acabou consolidando o Sôren Quírquegaard . Søren Kierkegaard é um daqueles nomes que atravessam o tempo como um eco incômodo. Nascido em Copenhague, Dinamarca, em 1813, e falecido em 1855, aos 42 anos, ele viveu pouco, mas deixou uma obra que continua a desafiar a modernidade. Falar de Kierkegaard é mergulhar no terreno da angústia, da fé e da subjetividade, em um caminho que o torna precursor do existencialismo e ainda hoje essencial para compreender as crises do ser humano contemporâneo . A fil...

Erik Erikson: Reflexões sobre Identidade, Vida e Psicanálise

Erik Erikson : Reflexões sobre Identidade, Vida e Psicanálise Falar de Erik Erikson é falar de um homem cuja própria vida já parecia anunciar sua obra. Nascido em Frankfurt, em 1902, filho de mãe dinamarquesa judia e de um pai biológico ausente, cresceu cercado por um sentimento de estranhamento e de busca. Quem sou eu? De onde vim? Questões que qualquer um de nós carrega, mas que, nele, ganharam uma densidade existencial que se transformaria em pensamento científico e clínico. Freud afirmava que “as experiências infantis são a matriz de nossa vida futura”, e não é difícil perceber que a vida de Erikson foi marcada justamente por essa herança de enigmas e ausências. A juventude e o encontro com a psicanálise Na juventude, Erikson mudou-se para Viena. Ali, encontrou Anna Freud, filha de Sigmund Freud, e mergulhou na psicanálise infantil. Esse contato não apenas moldou sua formação, mas lhe abriu os olhos para um olhar mais amplo sobre o desenvolvimento humano. Enquanto a psicanáli...

A Psicanálise e a Tradição Judaica: Reflexões Pessoais

A Psicanálise e a Tradição Judaica: Reflexões Pessoais Sempre me intrigou a maneira como duas tradições aparentemente tão distantes, a psicanálise e a Torá , dialogam em silêncio . Freud abriu as portas da alma humana para o inconsciente, enquanto a Torá, com seus relatos antigos e sua poesia simbólica, já narrava, há milênios, os dilemas internos do homem. Quando mergulho nesses dois universos, sinto que ambos falam da mesma coisa: da nossa fragilidade, da nossa culpa, do desejo que nos move e do mistério que nos habita . Freud dizia que “o Eu não é senhor em sua própria casa”. Essa frase ecoa em mim quando penso em Adão e Eva, escondendo-se após comer do fruto proibido . O primeiro pecado não é apenas teológico, mas psicanalítico: é o surgimento da vergonha, da castração, da consciência de que há algo que nos escapa . A Torá mostra, em sua primeira narrativa, que não somos plenamente donos de nós mesmos, e a psicanálise traduz isso em termos clínicos . Nietzsche, ao criticar a m...

Chistes: o riso como espelho da alma

O que é o riso, senão um grito da alma travestido de leveza? Freud dizia que no chiste há sempre algo de economia psíquica, um desvio astuto do inconsciente que, por uma brecha, encontra sua forma de expressão . Não é à toa que o chiste, esse pequeno arranjo linguístico que nos arranca gargalhadas ou nos faz sorrir em silêncio, revela mais do que aparenta. No mundo acelerado, em que a fala é muitas vezes esvaziada, os chistes emergem como faíscas de verdade. São lampejos que condensam desejo, crítica e inconsciente em um instante . Este artigo convida o leitor a mergulhar nesse território, onde a psicanálise, a filosofia e a vida cotidiana se encontram no jogo de palavras e no prazer da transgressão. Etimologia e significado A palavra “ chiste ” vem do alemão Witz e do latim cistus , associada à ideia de agudeza, espírito e sagacidade. Em português, ganhou a conotação de graça verbal, jogo de palavras ou trocadilho inteligente. Mas reduzir o chiste a uma piada simplória é comet...

O que é Raiva, Ódio, Mágoa, Ressentimento e Alegria na Visão Psicanalítica

O que é Raiva, Ódio, Mágoa, Ressentimento e Alegria na Visão Psicanalítica Em nosso cotidiano, frequentemente confundimos emoções como raiva, ódio, mágoa, ressentimento e alegria. Embora possam parecer semelhantes, cada uma delas possui características distintas que influenciam profundamente nosso comportamento e bem-estar. A psicanálise, fundada por Sigmund Freud, oferece uma perspectiva única para compreender essas emoções, explorando suas origens, manifestações e impactos na psique humana. Neste artigo, vamos analisar cada uma dessas emoções sob a ótica psicanalítica, buscando entender suas nuances e implicações. Raiva: A Primeira Reação à Frustração A raiva é uma emoção primária, geralmente desencadeada por frustrações ou ameaças percebidas. Freud a associava a uma resposta instintiva do ego frente a situações que desafiam seu equilíbrio. Segundo ele, a raiva pode ser uma defesa contra sentimentos de impotência ou humilhação . Em sua obra "O Mal-Estar na Civilização",...

Atravessar o fantasma na psicanálise lacaniana: o encontro com a falta e a liberdade do desejo

Atravessar o fantasma na psicanálise lacaniana: o encontro com a falta e a liberdade do desejo Você já parou para pensar que muito do que chamamos de vida é guiado por um roteiro invisível? Lacan chamou esse roteiro de fantasma. É uma cena interna, quase um teatro silencioso, que dá sentido ao nosso desejo e ao nosso sofrimento. Mas o que acontece quando percebemos que esse teatro não é a vida real, e que somos mais do que o personagem que atuamos? É aqui que entra um dos conceitos mais provocativos da psicanálise lacaniana: atravessar o fantasma. Essa é a experiência em que o sujeito se separa da ilusão que sustenta suas repetições e aceita a falta como algo constitutivo, não para eliminá-la, mas para lidar com ela de forma criativa e responsável. O que é o fantasma para Lacan Na teoria lacaniana, o fantasma é a estrutura imaginária que organiza o desejo . Ele é formado pelas marcas do inconsciente , pelas experiências com o outro e pelas perdas iniciais que moldam nossa subjetiv...

chistes, Atos Falhos, Sonhos e Sintomas

Há algo de fascinante quando penso nos chistes, nos atos falhos, nos sonhos e nos sintomas. Em todos eles, encontro a mesma lógica: o inconsciente não é um lugar obscuro e distante, mas um palco vivo onde a verdade insiste em aparecer, ainda que disfarçada . Freud dizia que “ os chistes são uma liberação de prazer ”, e cada vez que rio de algo aparentemente simples, sinto que ali existe uma mensagem mais profunda, quase uma brecha por onde escapa o indizível. O chiste toca no desejo reprimido, mas o faz de maneira leve, rindo de si mesmo. É a linguagem do inconsciente brincando com as bordas da consciência. Os atos falhos, por sua vez, me inquietam ainda mais. Não são erros banais. Quando digo um nome no lugar de outro ou esqueço uma palavra que parecia óbvia, sei que não se trata de um acaso. Freud insistiu: “o inconsciente fala através do lapso”. Em minha prática clínica, percebo que esses pequenos tropeços revelam muito mais do que discursos elaborados. É como se o inconsciente, si...