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Jacques Lacan - Seminário XXIII: O Sinthoma


Jacques Lacan - Seminário XXIII: O Sinthoma (1975-1976)
Neste seminário, Lacan toma James Joyce como objeto clínico e estético, mas, sobretudo, como alguém que, com sua arte, criou para si uma amarração singular. Não mais o sintoma que se interpreta para desaparecer, mas o sinthoma como solução, como suplência, como estrutura.

Sinthoma, com "h", escreve Lacan. Ele o extrai da grafia antiga e o investe de um novo valor: não é mais o portador de um conflito entre desejo recalcado e Lei paterna, mas aquilo que mantém o sujeito de pé. Uma invenção para se viver quando o Nome-do-Pai não opera. O sinthoma é o que liga Real, Simbólico e Imaginário, quando esses três registros não se entrelaçam naturalmente.

Joyce, diz Lacan, não era psicótico, mas tampouco neuroticamente estruturado. Seu pai estava presente, mas sua função simbólica era falha. Faltava-lhe o Nome-do-Pai. E é aí que Joyce se inventa: com a escrita. Sua literatura, ao mesmo tempo hermética e excessiva, torna-se uma amarração. Não apenas escreve livros, escreve a si mesmo como sinthoma.

Lacan demonstra isso explorando Ulisses e Finnegans Wake. A linguagem em Joyce não é meio de comunicação, é um gozo. As palavras escorrem, se deformam, se reinventam. A sintaxe implode, a semântica gira. É a língua como corpo pulsante. Joyce escreve como quem borda um nó impossível, um tecido simbólico que o sustenta.

Ao longo do seminário, Lacan retoma o nó borromeano: três anéis que só se sustentam juntos. Um furo em qualquer um deles, e a amarra se desfaz. Quando esse furo ocorre, como na psicose, há o desencadeamento. Mas se o sujeito consegue inventar um quarto anel, um sinthoma, ele pode restaurar a consistência. Joyce não se analisou, mas produziu esse quarto nó com sua arte. A escrita foi seu substituto da função paterna.

O sinthoma é gozo amarrado. É o ponto em que o corpo, a letra e o desejo se entrelaçam. É o estilo do sujeito. Não se interpreta o sinthoma como se interpreta o sintoma freudiano. O sinthoma se lê, se acompanha, se escuta. Ele é o saber do corpo.

Neste seminário, a clínica lacaniana muda de tom. O analista já não busca dissolver o sintoma, mas apoiar o sujeito na sustentação de seu sinthoma. Não se trata de normalizar, mas de tornar habitável sua invenção. O sinthoma se transforma em condição de existência.

Lacan está fascinado com a potência do ato criativo. A arte aparece como modelo de sinthoma eficaz. A escrita de Joyce não é uma expressão da verdade, mas uma operação sobre o real. Ele não representa o inconsciente, ele o escreve. E nessa escrita, há amarração.

Lacan conclui que Joyce, com sua arte, conseguiu evitar a psicose. Inventou um modo singular de se manter no mundo. E nos ensina que a análise não visa apagar o que há de mais singular em cada um, mas escutar essa singularidade até que ela se transforme em estrutura.

O sinthoma é a última palavra da psicanálise de Lacan. Não como fim, mas como dobra. Ele encerra um ciclo e abre outro. Da escuta à amarração. Do sujeito dividido ao sujeito criador de sua própria costura.

No Seminário XXIVL’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre, a palavra falha se faz poema. O lapsus é verdade. A língua goza. O inconsciente se escreve. A letra é carne. A interpretação é poesia.

Referências confiáveis:

  1. Lacan, Jacques. Le Séminaire, Livre XXIII: Le Sinthome (1975-1976), transcrição de Jacques-Alain Miller.

  2. Miller, Jacques-Alain. Extimidade, especialmente o capítulo sobre Joyce.

  3. Laurent, Éric. O sinthoma como nó do gozo.

  4. Jean-Michel Rabaté. Lacan and the Subject of Literature.

  5. James Joyce. Finnegans Wake, Ulysses, Retrato do Artista Quando Jovem.

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