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Jacques Lacan - Seminário XXIV: "L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre"

 

Jacques Lacan - Seminário XXIV: "L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre" (1976-1977)

Neste seminário, o título já é uma charada. “L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre” é uma construção de palavras que evoca várias leituras possíveis. Traduzível de forma aproximada como “o não-sabido que sabe do equívoco feminino se eleva ao morrer”, ou ainda, “o insabido que sabe de uma-falha se alça à morte”. É o triunfo do lapsus, do trocadilho, da língua como corpo vivo que escapa à lógica do significante mestre.

Lacan propõe neste seminário uma retomada da linguagem não mais como estrutura sólida, mas como tropeço. A língua falada se revela como lalíngua um corpo de som e gozo onde o sujeito se banha, onde o saber não é conceito, mas falha. Lalíngua é aquilo que se gruda à pele desde o início, como baba materna, como murmúrio inaugural que nos marca antes mesmo do sentido.

Ele retoma aqui sua ideia de que “o inconsciente está estruturado como uma linguagem”, mas agora a linguagem já não é a língua do dicionário, nem o significante fixo. É lalíngua mistura de som, gozo, carne e corte. A verdade do sujeito não está no que ele diz, mas nos equívocos de sua fala. O inconsciente fala através dos lapsos, trocadilhos, mal-entendidos.

Lacan gira ao redor da “una-bévue” uma falha, um engano que é também “une bévue”, uma cegueira, um erro de visão. A mulher, em sua alteridade, escapa à função fálica. “A mulher não existe”, dizia ele no seminário anterior. Agora, ele aprofunda: o feminino é o lugar do equívoco radical. O gozo feminino, “o outro gozo”, não é representável por palavras. É um gozo que ex-cede o falo, que beira o místico.

Neste ponto, Lacan retoma a questão do gozo não-todo. O feminino se situa como “não-todo” representável no campo do simbólico. Ele não está fora, mas fura o sistema. É um furo real no saber. Por isso, a mulher encarna o enigma. Não por falta de saber, mas por excesso de gozo que não se traduz.

O que se eleva à morte, portanto, é o saber totalizante. O que se alça, nas asas da "mourre" (também lido como "amour" ou "mort"), é o equívoco como estilo. Lacan propõe uma clínica onde o analista não é mestre da verdade, mas leitor do tropeço, poeta do engano.

O sinthoma, discutido no seminário anterior, se desdobra agora em um saber fazer com o equívoco. O sintoma não é mais para ser decifrado, mas sustentado, lido como estilo de gozo. A análise não visa dissolver, mas permitir ao sujeito inventar sua língua própria sua lalíngua.

A mulher, em sua não-representação, se torna o paradigma desse saber-do-não-saber. Não por ignorância, mas por um saber do corpo que não se reduz a significante. O amor, nesta perspectiva, é o nome dado ao que tenta colar o impossível entre os sexos.

Lacan está cada vez mais próximo da poesia e do misticismo. Ele evoca os místicos como João da Cruz e Teresa de Ávila, em busca de nomear esse gozo feminino que fura o simbólico. O místico e a mulher, diz Lacan, compartilham esse saber do corpo que não é saber discursivo. É um saber do Real.

O seminário se encerra com Lacan convocando os analistas a uma ética do não-saber. A posição do analista é a de quem suporta o enigma, a de quem consente com o furo, a de quem não impõe sentido, mas sustenta o equívoco.

Seminário XXVO Momento de Concluir, mostra que a análise não termina no saber. Termina no sinthoma. No que não muda. O sujeito não se cura. Se reconhece. Se suporta. O fim da análise é um começo.

Referências confiáveis:

  1. Lacan, Jacques. Le Séminaire, Livre XXIV: L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre (1976-1977), transcrição não oficial por Jacques-Alain Miller.

  2. Laurent, Éric. O que se eleva ao morrer - Leitura do Seminário 24.

  3. Milner, Jean-Claude. A obra clara: Lacan, a ciência, a filosofia.

  4. Harari, Roberto. Por que Lacan?

  5. Moustapha Safouan. A linguagem e o inconsciente.

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