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POSTAGENS

Aprofundando as Articulações de Totem e Tabu de Freud com Jacques Lacan e Claude Lévi-Strauss

1. Lévi-Strauss: O estruturalismo e a troca como fundamento da cultura Claude Lévi-Strauss, antropólogo francês, lê Totem e Tabu como uma tentativa pioneira, ainda que especulativa de pensar a origem das estruturas sociais. Em sua obra "As estruturas elementares do parentesco" (1949) , ele retoma a tese freudiana do tabu do incesto, mas desloca o foco do parricídio mítico para a troca de mulheres como base estruturante da sociedade . Para Lévi-Strauss, o tabu do incesto não deve ser visto apenas como proibição, mas como condição de possibilidade para a aliança entre grupos . Ao impedir a união sexual dentro do mesmo clã, a cultura obriga os indivíduos a buscar parceiros fora do grupo — é o que ele chama de exogamia , e isso funda o tecido social. A troca de mulheres é, portanto, a primeira forma de circulação simbólica: ao ceder a mulher, o grupo se insere em uma rede de alianças e obrigações. Lévi-Strauss reconhece a importância de Freud em apontar para uma estrutura inc...

Jacques Lacan – Seminário XVIII: De um Discurso que não fosse de Semblante (1971)


Jacques Lacan – Seminário XVIII: De um Discurso que não fosse de Semblante (1971)

Neste seminário, Lacan interroga o estatuto do discurso. Não qualquer discurso, mas aquele que estrutura os sujeitos, os saberes e os laços sociais. Os quatro discursos do Mestre, da Histérica, do Universitário e do Psicanalista já haviam sido delineados. Aqui, Lacan se pergunta: seria possível um quinto discurso? Um que não fosse construído sobre semblantes? Um discurso do real, sem ilusão?

O semblante, para Lacan, não é mentira. É aquilo que sustenta a verdade. Mas uma verdade que se diz sempre pela metade. O semblante é necessário. Ele organiza o mundo, possibilita a linguagem, estrutura a fantasia. No entanto, ele também esconde. Oculta o real. Um discurso que não fosse de semblante seria um discurso do impossível. Do que não se representa. Do que não se escreve.

Lacan se aproxima aqui do gozo feminino, o gozo que não está todo representado no falo. É o gozo Outro. Um gozo que escapa à estrutura fálica. Que se inscreve no corpo, mas que não se simboliza inteiramente. Esse gozo toca o real. É um excesso. Um além do sentido. Um transbordamento que inquieta, que fura, que perturba a ordem fálica dos discursos tradicionais.

O feminino, neste seminário, é menos uma questão de gênero e mais uma posição frente ao real. A mulher com artigo indefinido, pois “A mulher” como totalidade não existe encarna esse outro gozo. Ela é o Outro do discurso fálico. E por isso, ela também é o Outro do saber. Lacan se inspira em Platão, nas místicas cristãs, em Marguerite Porete, para mostrar como o feminino toca um saber sem saber, um saber que não é articulado, mas vivido. Um saber do corpo, do êxtase, da ausência de limites.

Nesse seminário, Lacan afirma que o real é aquilo que não cessa de não se escrever. Ou seja, é o que insiste como furo, como impossível, como resto. O real não é a realidade. É o que resiste ao discurso. O que sobra da linguagem. E por isso, um discurso que não fosse de semblante seria um paradoxo: ele seria construído com palavras, mas para dizer o que escapa às palavras.

Ele também retoma a lógica do não-todo. O gozo feminino, por não ser todo representável pelo falo, é não-todo. Não é ausência, mas excesso. E esse excesso está no corpo, na experiência mística, na poesia, na loucura. O não-todo é uma forma de estar no mundo sem ser totalizado. De se sustentar na incompletude. Lacan não idealiza a mulher, mas aponta que ela pode encarnar uma experiência do real que o homem, preso ao todo fálico, muitas vezes recusa.

O discurso do psicanalista é aquele que se sustenta no semblante, mas que visa tocar o real. É um discurso tenso, paradoxal, ético. O analista ocupa o lugar do objeto a, aquilo que causa o desejo. Ele é semblante de objeto, mas não se confunde com ele. Ele opera um corte, abre um vazio, convida o sujeito à travessia.

Lacan afirma que o discurso do analista é o que melhor se aproxima de um discurso que não fosse de semblante. Mas mesmo ele não escapa inteiramente. Porque a linguagem é feita de semblantes. A única possibilidade de escapar seria pelo silêncio, pelo corpo, pelo ato. Mas até o ato se inscreve numa cadeia. Até o silêncio é escutado como signo.

O seminário XVIII é, portanto, uma meditação sobre os limites da psicanálise. Sobre a sua potência e sua impotência. Ele toca o impossível da cura, o impossível do saber, o impossível da relação sexual. Pois a relação sexual não existe, como dirá Lacan: não há proporção, fórmula, linguagem que dê conta do encontro entre os sexos. Há apenas semblantes, fantasias, jogos de espelhos. E, por vezes, um gozo que escapa.

Lacan conclui que todo discurso é atravessado por semblantes, mas que é possível operar neles com ética. A psicanálise não promete uma verdade plena, mas oferece ao sujeito a chance de se separar de seus próprios semblantes. De deixar cair suas identificações imaginárias. De tocar, ainda que por um instante, o que em si escapa.

Em seguida, De Um Outro ao outroSeminário XVIII. Lacan trabalha o significante, o gozo, a letra. O Outro não é mais lugar garantido. O Outro falha. E o sujeito se confronta com esse buraco. A letra fura o sentido. O real aparece.

Seminário XIX... ou Pior, afirma que o sentido é gozo. Que o sujeito goza de não entender. A fala é gozo. O equívoco é estrutura. O sintoma é leitura possível do impossível. Lacan aponta para o sinthoma como novo laço.

Referências confiáveis

  1. Lacan, Jacques. Le Séminaire, Livre XVIII: D’un discours qui ne serait pas du semblant (1971), ed. Seuil.

  2. Miller, Jacques-Alain. La logique du pas-tout, curso sobre o gozo feminino e o não-todo.

  3. Catherine Millot. A vida com Lacan. Trechos iluminadores sobre esse seminário.

  4. Roudinesco, Élisabeth. Jacques Lacan – Esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento.

  5. Zizek, Slavoj. O sujeito incômodo – Lacan entre Kant e Hegel.

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