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Aprofundando as Articulações de Totem e Tabu de Freud com Jacques Lacan e Claude Lévi-Strauss

1. Lévi-Strauss: O estruturalismo e a troca como fundamento da cultura Claude Lévi-Strauss, antropólogo francês, lê Totem e Tabu como uma tentativa pioneira, ainda que especulativa de pensar a origem das estruturas sociais. Em sua obra "As estruturas elementares do parentesco" (1949) , ele retoma a tese freudiana do tabu do incesto, mas desloca o foco do parricídio mítico para a troca de mulheres como base estruturante da sociedade . Para Lévi-Strauss, o tabu do incesto não deve ser visto apenas como proibição, mas como condição de possibilidade para a aliança entre grupos . Ao impedir a união sexual dentro do mesmo clã, a cultura obriga os indivíduos a buscar parceiros fora do grupo — é o que ele chama de exogamia , e isso funda o tecido social. A troca de mulheres é, portanto, a primeira forma de circulação simbólica: ao ceder a mulher, o grupo se insere em uma rede de alianças e obrigações. Lévi-Strauss reconhece a importância de Freud em apontar para uma estrutura inc...

Seminário VII: A Ética da Psicanálise - o desejo como bússola e o real como limite

 

Seminário VII: A Ética da Psicanálise - o desejo como bússola e o real como limite

O Seminário VII é um divisor de águas no ensino de Jacques Lacan. Até aqui, seus seminários anteriores tratavam da estrutura do sujeito, da linguagem, do desejo, do sintoma. Agora, ele vai além da técnica, além da estrutura clínica. Ele quer saber: o que orienta a prática analítica? Qual é o seu bem? Qual é sua medida de ação? A resposta não virá de nenhuma moral convencional, de nenhum ideal de normalidade ou felicidade. A ética da psicanálise, diz Lacan, é a ética do desejo. E ela é radical, inquietante, muitas vezes insuportável.

Desde o início, Lacan delimita seu terreno: a psicanálise não compartilha da moral do bem-estar, nem se orienta por valores sociais. Ela se funda num outro campo, onde o sujeito está dividido, faltante, em luta com sua verdade. A análise, então, não pode visar à adaptação, à saúde no sentido médico, à moral cristã ou à realização plena do eu. O único bem possível na psicanálise é o desejo. A ética analítica é sustentar o desejo, mesmo quando ele confronta o sujeito com o impossível.

Para construir sua reflexão, Lacan dialoga com os grandes nomes da ética na história da filosofia. Ele recusa o utilitarismo, que busca o prazer como fim. Recusa a ética kantiana, centrada na universalidade da razão e do dever. E vai buscar na tragédia grega, especialmente em Antígona, de Sófocles, uma figura que ilustra o ponto em que o desejo se sustenta contra tudo, inclusive contra a própria vida.

Antígona, para Lacan, é o paradigma do sujeito ético. Ela não recua diante da lei do desejo. Ela ultrapassa os limites da norma, da convenção, da sobrevivência. Ela exige sepultar seu irmão, ainda que isso a condene à morte. Ela paga o preço do desejo com a própria existência. Antígona atravessa a zona do interdito e encarna o que Lacan chama de coisa, ou das Ding, termo que ele toma emprestado de Freud. A coisa é o núcleo real do gozo, o ponto de opacidade onde o simbólico falha. É o que há de mais íntimo e mais estranho no desejo.

Essa coisa é inacessível, mas é em torno dela que o sujeito se estrutura. É o gozo absoluto, impossível, que atrai e repele ao mesmo tempo. O sujeito deseja a coisa, mas não pode tocá-la sem cair no horror, na morte, na desintegração simbólica. O campo ético da análise é justamente esse: como sustentar o desejo diante da coisa sem ser tragado por ela?. Como manter o sujeito em relação com o real sem cair no gozo mortífero?

Lacan articula o campo do desejo com o campo da castração. A castração simbólica é o que nos separa da coisa, o que nos impede de gozar absolutamente. É o que estrutura o sujeito como faltante, dividido. Mas essa falta não é uma falha, é condição. Desejamos porque não temos. Porque não somos completos. A ética da psicanálise não visa abolir essa falta, mas sustentá-la, habitá-la, escutá-la.

Neste seminário, o conceito de gozo começa a se delinear com mais clareza. O gozo não é prazer. É aquilo que ultrapassa o princípio do prazer, que rompe os limites da linguagem, que encosta no real. O sintoma, o acting out, o suicídio, o crime, a pulsão de morte tudo isso são formas em que o sujeito tenta tocar o real da coisa. Mas a análise não deve empurrar o sujeito para o gozo, e sim ajudá-lo a se situar diante dele, reconhecer sua função, encontrar uma posição possível.

Lacan também distingue entre o desejo neurótico e o desejo ético. O neurótico recua diante do desejo. Ele se defende, se sabota, se esconde. Ele prefere o sintoma à verdade. A análise é o espaço onde essa defesa pode ser desmontada. Mas isso só é possível se o analista não ceder ao desejo do paciente, não ocupar o lugar do mestre, do pastor ou do conselheiro. O analista, eticamente, é aquele que sustenta a falta, que encarna o ponto de opacidade onde o desejo pode emergir sem ser moralizado ou reduzido.

O ponto central do Seminário VII é o famoso imperativo ético de Lacan: "não cedas do teu desejo". Não se trata aqui de fazer tudo o que se deseja, mas de não trair aquilo que te constitui. Ceder do desejo é ceder de si mesmo, é alinhar-se à alienação, ao ideal do Outro, ao conformismo. A análise só tem valor se leva o sujeito até esse ponto onde ele pode se deparar com o que o move de forma mais radical, ainda que isso o confronte com o real da morte, da solidão, do sem-sentido.

Esse seminário também lança luz sobre a função do analista. Ele não é um técnico da escuta, nem um curador da alma. Ele é um operador do desejo. Ele ocupa o lugar da causa, não da resposta. Seu ato é silencioso, mas potente. Ele não diz o que o sujeito deve fazer. Ele sustenta o ponto onde o sujeito pode se ouvir. A ética do analista é não interferir no desejo do outro, mas sustentar sua emergência, mesmo quando ela incomoda, mesmo quando ela assusta.

Ao final do Seminário VII, Lacan nos deixa diante do abismo. A análise não é redenção. Não é salvação. É travessia. Travessia do gozo, da fantasia, da mentira do eu. É caminho de retorno ao desejo como causa, não como finalidade. E isso exige coragem. Exige perder o apoio nos ideais, na moral, nos saberes prontos. Exige habitar o vazio que se abre entre o que se é e o que se deseja. A ética da psicanálise é a ética do sujeito dividido, que não cede de seu desejo, mesmo diante do impossível.

Chega o Seminário VIIIA Transferência. Sócrates e Alcibíades dançam o drama do amor transferencial. O analista é semblante de objeto a. Ele não é amado. Ele sustenta o lugar da falta. A transferência é uma armadilha, mas também é motor. Amar é dar o que não se tem a quem não o é.

Referências bibliográficas

Lacan, Jacques. O Seminário, Livro 7: A Ética da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988
Freud, Sigmund. O mal-estar na civilização. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago
Sófocles. Antígona. Traduções diversas
Fink, Bruce. Fundamentos da clínica lacaniana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor
Roudinesco, Élisabeth. Jacques Lacan: esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento. Rio de Janeiro: Zahar
Nasio, Juan-David. O inconsciente é o discurso do Outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor

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