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Aprofundando as Articulações de Totem e Tabu de Freud com Jacques Lacan e Claude Lévi-Strauss

1. Lévi-Strauss: O estruturalismo e a troca como fundamento da cultura Claude Lévi-Strauss, antropólogo francês, lê Totem e Tabu como uma tentativa pioneira, ainda que especulativa de pensar a origem das estruturas sociais. Em sua obra "As estruturas elementares do parentesco" (1949) , ele retoma a tese freudiana do tabu do incesto, mas desloca o foco do parricídio mítico para a troca de mulheres como base estruturante da sociedade . Para Lévi-Strauss, o tabu do incesto não deve ser visto apenas como proibição, mas como condição de possibilidade para a aliança entre grupos . Ao impedir a união sexual dentro do mesmo clã, a cultura obriga os indivíduos a buscar parceiros fora do grupo — é o que ele chama de exogamia , e isso funda o tecido social. A troca de mulheres é, portanto, a primeira forma de circulação simbólica: ao ceder a mulher, o grupo se insere em uma rede de alianças e obrigações. Lévi-Strauss reconhece a importância de Freud em apontar para uma estrutura inc...

Seminário IV de Lacan: A Relação de Objeto e a Estrutura do Desejo

 

Seminário IV de Lacan: A Relação de Objeto e a Estrutura do Desejo

Em 1956, Jacques Lacan dá continuidade à sua reinterpretação de Freud com o Seminário IV, intitulado A Relação de Objeto. Neste seminário, ele lança as bases de uma das maiores inovações de seu ensino: a introdução do conceito de objeto a, um objeto que não é real nem imaginário, mas estrutural, que ocupa o lugar da falta no sujeito e organiza o campo do desejo. O Seminário IV é uma ponte entre o Lacan estruturalista dos primeiros seminários e o Lacan do gozo e do objeto causa do desejo que se desenvolverá nos anos seguintes.

A partir da leitura crítica dos textos freudianos e da teoria das relações objetais da escola inglesa, especialmente Melanie Klein e Winnicott, Lacan faz um movimento decisivo. Ele recusa a ideia de que o objeto seja algo dado, empírico, manipulável, como propõem os pós-freudianos. Para Lacan, o objeto não é aquilo que o sujeito tem ou perde, mas aquilo que falta ao sujeito, e é exatamente por essa falta que ele deseja. O desejo não é dirigido a um objeto real, mas é mantido em movimento pela presença de um objeto ausente, um objeto que causa o desejo, mas que nunca se satisfaz plenamente.

O objeto, portanto, não é o fim do desejo, mas sua causa. Lacan introduz aqui uma noção fundamental: o desejo humano não é desejo de um objeto em si, mas desejo de manter o desejo vivo. O sujeito deseja porque lhe falta algo. E essa falta não é acidental, mas constitutiva. Ela surge da própria entrada na linguagem, onde o sujeito perde algo de si ao se inscrever na ordem simbólica. O objeto perdido não é recuperável. Ele se torna o que Lacan chamará de objeto a: o pequeno objeto que representa o que foi perdido na entrada no mundo simbólico, o que foi arrancado para que o sujeito se tornasse falante.

Neste seminário, Lacan analisa diferentes formas de relação de objeto, presentes nas estruturas clínicas. Ele mostra que a relação do neurótico com o objeto é marcada pela fantasia, pela tentativa de tamponar a falta com um objeto idealizado. O obsessivo, por exemplo, tenta evitar o desejo ao manipular o objeto em termos simbólicos, criando rituais e estruturas rígidas. Já o histérico se constitui como objeto do desejo do Outro, buscando constantemente manter o desejo insatisfeito, como forma de sustentar sua própria existência desejante.

Lacan também examina a perversão como uma estrutura específica em relação ao objeto. O perverso não busca o objeto como o neurótico, mas se identifica com a função de objeto do gozo do Outro. Ele não deseja como o neurótico, ele satisfaz o gozo do Outro. A perversão não é simplesmente uma escolha sexual, mas uma posição subjetiva diante da falta e da lei. O perverso rejeita a castração, nega a falta, e por isso busca realizar uma cena em que o gozo do Outro seja sustentado por sua própria posição de objeto.

No Seminário IV, Lacan introduz as quatro figuras do objeto a, que se desenvolverão mais plenamente em seminários posteriores: o seio, as fezes, a voz e o olhar. Cada um desses objetos é uma parte do corpo que se destaca no processo de constituição do sujeito, e que passa a operar como causa do desejo. O seio, por exemplo, representa a perda do corpo da mãe na experiência do desmame. As fezes simbolizam a oferta primitiva do bebê à mãe. A voz e o olhar são objetos pulsionais que não pertencem ao corpo enquanto tal, mas funcionam como restos do corpo perdidos na simbolização.

O objeto a não é o objeto amado, nem o objeto de consumo, nem o objeto utilitário. Ele é aquilo que está em jogo na fantasia inconsciente, o ponto onde o desejo se organiza. A fantasia fundamental de cada sujeito envolve a posição que ele ocupa diante desse objeto perdido. A análise deve operar sobre essa fantasia, fazendo com que o sujeito se confronte com sua posição desejante, com sua relação com a falta e com o gozo. Não se trata de adaptar o sujeito à realidade, mas de possibilitar que ele assuma sua posição de desejo.

Lacan também retoma a noção freudiana de pulsão, diferenciando-a do instinto. A pulsão não visa a um objeto natural, mas circula em torno da perda. A pulsão é uma montagem, uma borda entre o corpo e a linguagem, que contorna o vazio do objeto perdido. O circuito pulsional não busca satisfazer, mas repetir. E o objeto a está no centro desse circuito, como causa e como resto. O gozo, que será tema central nos seminários seguintes, já começa a despontar aqui como aquilo que escapa ao prazer e insiste além do princípio da realidade.

No campo clínico, o Seminário IV propõe uma nova ética da escuta. O analista não deve procurar o objeto real do sujeito, nem oferecer interpretações que tamponem a falta. Ao contrário, ele deve sustentar o lugar do objeto a, operar como causa do desejo, sem se identificar com o saber. O analista deve escutar a fantasia, localizar o objeto perdido e provocar deslocamentos na economia do desejo do sujeito. A análise não visa à harmonia, mas à verdade do desejo. E essa verdade só emerge na travessia da fantasia, na confrontação com o que falta.

A relação de objeto, para Lacan, é uma relação com a ausência. Não é o objeto que estrutura o sujeito, mas a falta dele. O Seminário IV nos convida a abandonar a ilusão de completude e a aceitar que o desejo é falta, é corte, é exílio. Só nesse campo, onde o sujeito se constitui como dividido, como barrado, é que pode emergir uma ética do desejo. E essa ética não é da adaptação, mas da assunção da falta como condição da existência.

Ao fim do Seminário IV, Lacan oferece ao campo psicanalítico uma chave de leitura que muda radicalmente o lugar do objeto na teoria e na clínica. Ele não é mais o objetivo da análise, mas a sua condição. A relação de objeto não se dá com o que se possui, mas com o que se perdeu. E é nesse vazio, nesse ponto sem representação, que pulsa o desejo humano, inexaurível, insistente, sempre em busca daquilo que escapa à linguagem, mas que estrutura o sujeito.

No Seminário VAs Formações do Inconsciente, o sonho é lido como metáfora. O chiste como metonímia. O inconsciente como linguagem. O sujeito se escreve em equívocos. A verdade se insinua no erro. O saber escorre pelas bordas da fala.

Referências bibliográficas

Lacan, Jacques. O Seminário, Livro 4: A Relação de Objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995
Freud, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago
Fink, Bruce. A clínica lacaniana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999
Miller, Jacques-Alain. Introdução à leitura de Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor
Nasio, Juan-David. O inconsciente é estruturado como uma linguagem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor

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