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POSTAGENS

Aprofundando as Articulações de Totem e Tabu de Freud com Jacques Lacan e Claude Lévi-Strauss

1. Lévi-Strauss: O estruturalismo e a troca como fundamento da cultura Claude Lévi-Strauss, antropólogo francês, lê Totem e Tabu como uma tentativa pioneira, ainda que especulativa de pensar a origem das estruturas sociais. Em sua obra "As estruturas elementares do parentesco" (1949) , ele retoma a tese freudiana do tabu do incesto, mas desloca o foco do parricídio mítico para a troca de mulheres como base estruturante da sociedade . Para Lévi-Strauss, o tabu do incesto não deve ser visto apenas como proibição, mas como condição de possibilidade para a aliança entre grupos . Ao impedir a união sexual dentro do mesmo clã, a cultura obriga os indivíduos a buscar parceiros fora do grupo — é o que ele chama de exogamia , e isso funda o tecido social. A troca de mulheres é, portanto, a primeira forma de circulação simbólica: ao ceder a mulher, o grupo se insere em uma rede de alianças e obrigações. Lévi-Strauss reconhece a importância de Freud em apontar para uma estrutura inc...

Jacques Lacan – Seminário XVII: O Avesso da Psicanálise (1969-1970)


Jacques Lacan – Seminário XVII: O Avesso da Psicanálise (1969-1970)
Neste seminário, Lacan apresenta pela primeira vez de forma estruturada os quatro discursos: o do Mestre, da Histérica, do Universitário e do Psicanalista. Cada um é uma máquina simbólica que organiza posições, desejo, saber e gozo. O que está em jogo não é apenas a teoria, mas a política da linguagem. Lacan não está descrevendo instituições, mas a matriz lógica que sustenta as relações de poder, saber e subjetividade.

No discurso do Mestre, Lacan revela a estrutura que rege os sistemas autoritários: o significante-mestre comanda, ordena, impõe. Ele ocupa o lugar do agente. Produz um saber nos outros, mas esse saber serve para manter o poder. O sujeito está dividido, alienado, submisso. E o que resta dessa operação é o objeto a, a perda, o gozo sacrificado.

A Histérica, por sua vez, é a que questiona esse Mestre. Ela inverte a lógica. Deseja um saber sobre o seu desejo. Ela interroga, provoca, se oferece como sintoma para que o Outro diga quem ela é. Mas esse saber é impossível. Ela goza do não-saber. E o sujeito dividido se revela em sua angústia. A histérica é subversiva, mas também presa à estrutura. Deseja um saber que a cure, mas se sustenta no fracasso dessa cura.

O discurso Universitário aparece como aquele que transforma o saber em agente. Ele oculta sua origem no poder, naturaliza o discurso como se fosse neutro. É o discurso da ciência, da pedagogia, da gestão. Lacan denuncia aqui o perigo do saber que não reconhece seu gozo. O sujeito que emerge desse discurso é reduzido, objetivado, tratado como um elemento manipulável.

Já o discurso do Psicanalista é o avesso de todos os outros. Ele começa com o objeto a no lugar do agente. Não é o analista que comanda, mas aquilo que falta, que causa, que desestabiliza. O analista ocupa o lugar do resto, do que não encaixa. E é esse lugar ético que possibilita que o sujeito fale, atravesse seu fantasma, desmonte o saber que o oprime. O analista não ensina, não educa, não orienta. Ele suporta o vazio.

Lacan sublinha que esses discursos não são estáticos. Eles giram. Um se transforma no outro. A história é movida por essa rotação. E a psicanálise, para não se perder, deve manter sua posição singular. Se ela se confunde com o discurso universitário ou se deixa capturar pela lógica do mestre, ela trai sua função. A análise não é cura, mas desalienação. Ela não integra o sujeito na ordem social, ela o confronta com o real.

O saber que a análise toca é um saber do gozo. Um saber que não pode ser integralmente dito. Por isso, Lacan insiste que a verdade só se meio-diz. O real não se escreve. E a função do analista não é organizar sentidos, mas conduzir o sujeito até a borda do sem sentido. O inconsciente, neste seminário, já não é só estruturado como linguagem, mas atravessado por restos, por buracos, por gozos que não se deixam traduzir.

Lacan também denuncia o ideal humanista. A ideia de um sujeito transparente, autêntico, racional, é desmontada. O sujeito do inconsciente é dividido, faltante, barrado. A ética da psicanálise não é restaurar um eu perdido, mas reconhecer o não-saber que nos habita. O inconsciente não é aquilo que ignoramos, mas aquilo que insiste, que retorna, que fura a consistência do eu.

A psicanálise é, nesse sentido, política. Não no sentido ideológico, mas na medida em que questiona o lugar do poder, a estrutura dos discursos, a fabricação dos sujeitos. Lacan termina o seminário dizendo que o discurso analítico é o único que permite subverter os outros. Mas isso exige uma ética rigorosa: a de não ceder sobre o desejo, de sustentar a posição de resto.

O analista não se constitui por um saber adquirido, mas por uma travessia. Ele deve passar pela sua própria análise, desmontar seus próprios ideais, confrontar seu próprio gozo. Só assim poderá sustentar o lugar de causa, de escuta, de presença que não se impõe, mas se inscreve como ausência operante.

Este seminário é um convite à responsabilidade. A psicanálise só vive se mantiver viva sua posição de resistência. Contra o saber que domestica, contra o poder que silencia, contra o ideal que aliena. Lacan, aqui, finca a bandeira da análise como furo no discurso dominante. E esse furo é também seu ponto de potência.

Referências confiáveis

  1. Lacan, Jacques. Le Séminaire, Livre XVII: L’envers de la psychanalyse (1969–1970), ed. Seuil.

  2. Miller, Jacques-Alain. Elucidations of the Four Discourses, seminários complementares.

  3. Braunstein, Néstor. Gozo: Uma nova leitura da pulsão e do inconsciente à luz da última teoria de Lacan.

  4. Zizek, Slavoj. O avesso da psicanálise, análise filosófica e política do seminário XVII.

  5. Fédida, Pierre. Psicanálise e discurso: A leitura de Lacan.

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