Pular para o conteúdo principal

POSTAGENS

Aprofundando as Articulações de Totem e Tabu de Freud com Jacques Lacan e Claude Lévi-Strauss

1. Lévi-Strauss: O estruturalismo e a troca como fundamento da cultura Claude Lévi-Strauss, antropólogo francês, lê Totem e Tabu como uma tentativa pioneira, ainda que especulativa de pensar a origem das estruturas sociais. Em sua obra "As estruturas elementares do parentesco" (1949) , ele retoma a tese freudiana do tabu do incesto, mas desloca o foco do parricídio mítico para a troca de mulheres como base estruturante da sociedade . Para Lévi-Strauss, o tabu do incesto não deve ser visto apenas como proibição, mas como condição de possibilidade para a aliança entre grupos . Ao impedir a união sexual dentro do mesmo clã, a cultura obriga os indivíduos a buscar parceiros fora do grupo — é o que ele chama de exogamia , e isso funda o tecido social. A troca de mulheres é, portanto, a primeira forma de circulação simbólica: ao ceder a mulher, o grupo se insere em uma rede de alianças e obrigações. Lévi-Strauss reconhece a importância de Freud em apontar para uma estrutura inc...

Seminário VI de Lacan: O Desejo e sua Interpretação


Seminário VI de Lacan: O Desejo e sua Interpretação

No Seminário VI, Lacan finca de vez o estandarte da psicanálise como uma escuta do desejo. O que está em jogo aqui não é apenas uma teoria do desejo, mas um deslocamento ético, clínico e político que recoloca a psicanálise no campo do impossível. Não se trata de compreender o desejo, nem de satisfazê-lo, mas de interpretá-lo, ou melhor, de permitir que ele se diga. O desejo não é algo que se possui. É aquilo que escapa, que desliza, que estrutura o sujeito e que o exila de qualquer completude.

O desejo, diz Lacan, é sempre o desejo do Outro. Essa frase se repete como uma batida de tambor ao longo do seminário. O sujeito deseja aquilo que falta ao Outro, aquilo que ele acredita que o Outro deseja dele. Desejamos por mediação, por fantasia, por linguagem. O desejo não nasce do corpo, mas do campo simbólico. E sua lógica é a da metonímia, da substituição incessante de objetos que nunca satisfazem plenamente. O sujeito deseja porque é faltante, e porque o objeto de seu desejo é, estruturalmente, inacessível.

Lacan conduz neste seminário uma leitura minuciosa do caso Hamlet, de Shakespeare. Não como crítica literária, mas como caso clínico. Hamlet, o príncipe melancólico, é o herói trágico da hesitação, do adiamento, da palavra que não se completa. Ele é aquele que se confronta com o desejo do Outro — o desejo obscuro de sua mãe — e que não consegue realizar o ato que se impõe. Lacan vê em Hamlet a figura do sujeito dividido que não consegue responder à falta do Outro, porque sua própria posição desejante está colapsada.

É aqui que Lacan aprofunda sua teorização sobre a fantasia fundamental. A fantasia é a moldura imaginária onde o desejo se aloja. Ela oferece ao sujeito um lugar onde seu desejo pode existir de forma velada, protegida da angústia. A fórmula da fantasia — $ ◊ a — expressa essa estrutura: o sujeito dividido se confronta com o objeto a, que é a causa de seu desejo. A fantasia organiza o campo do desejo, mas também o encobre. É por isso que a análise não visa destruir a fantasia, mas possibilitar sua travessia. Só ao atravessar sua fantasia fundamental o sujeito se desidentifica do lugar onde foi capturado pelo gozo do Outro e se aproxima da verdade de seu desejo.

O objeto a, aqui, ganha mais consistência conceitual. Ele é aquilo que falta para o gozo ser completo, aquilo que foi perdido na entrada na linguagem. Não é um objeto empírico, mas uma função estrutural. Ele se manifesta no olhar, na voz, no seio, nas fezes, nos restos que o corpo abandona. O objeto a não se recupera. Ele se contorna. E o desejo circula em torno desse vazio, sustentando o sujeito no campo do simbólico.

Lacan discute com profundidade a função da interpretação analítica. Ela não é um esclarecimento, nem uma tradução do inconsciente para o consciente. A interpretação não revela. Ela fura. Ela introduz um corte na cadeia significante, desloca o sujeito, desorganiza o sentido. O bom analista não é o que sabe, mas o que intervém no ponto certo, onde o desejo pode emergir. A interpretação eficaz é poética, equívoca, enigmática. Ela produz uma verdade que não se diz diretamente, mas que se insinua, se dobra, se repete.

O desejo é marcado por sua relação com a lei e com a castração. Desejamos porque perdemos. A castração simbólica — a perda do objeto de gozo absoluto — é o que funda o campo do desejo. Sem a castração, o sujeito ficaria preso à completude imaginária, ao gozo mortífero. A função do Nome-do-Pai é barrar o gozo materno e permitir que o sujeito se posicione como desejante. O desejo é, portanto, o que resta depois da perda. E essa perda é constitutiva.

O Seminário VI também é uma crítica feroz às psicoterapias adaptativas que procuram restaurar o ego ou promover o ajustamento do sujeito à realidade. Lacan afirma com todas as letras: a psicanálise não cura do desejo, ela o sustenta. A análise não é uma moral do bem-estar, mas uma ética da verdade. E essa verdade é sempre parcial, fendida, marcada pela falta. A clínica não visa a harmonia, mas a singularidade do sujeito em sua relação com o desejo que o habita.

Nesse sentido, o analista é aquele que ocupa o lugar da causa do desejo do analisante. Ele não responde, não preenche, não oferece completude. Ele escuta o sujeito em sua divisão e sustenta o vazio necessário para que o desejo se escreva. O setting analítico é o espaço simbólico onde a palavra do sujeito pode se organizar em torno daquilo que falta. O analista interpreta ao tocar o ponto cego do discurso, ao introduzir o silêncio onde o gozo se repete.

Ao longo do seminário, Lacan reafirma a centralidade do desejo na constituição do sujeito. Desejar é existir como falta. O desejo é o que nos move, mas também o que nos fere. Ele nos lança em direção ao Outro, nos inscreve na linguagem, nos separa de qualquer totalidade. A análise é, assim, um caminho ético, onde o sujeito pode se aproximar de seu desejo sem pretender dominá-lo. O sujeito que passa pela análise não se torna mais feliz, mas mais responsável por seu desejo.

O Seminário VI é um canto poético ao desejo como motor da vida. Lacan restitui à psicanálise seu caráter trágico, mas também libertador. Ele mostra que a verdade do sujeito está escrita nas dobras da linguagem, nos lapsos, nos chistes, nos sintomas. E que só ao escutar o desejo que nos atravessa, mesmo quando ele nos fere, é que podemos nos tornar sujeitos de nossa própria história.

Em seguida, A Ética da PsicanáliseSeminário VII. Lacan nos conduz por Antígona e Kant, Sade e o gozo. O bem não guia a psicanálise. O desejo sim. E o desejo é ético. A ética da psicanálise é sustentar o desejo até o fim. Mesmo que o fim seja a morte.

Referências bibliográficas

Lacan, Jacques. O Seminário, Livro 6: O Desejo e sua Interpretação. Inédito em português na íntegra. Acesso em edições espanholas, transcrições e compilações de seminários.
Freud, Sigmund. A interpretação dos sonhos. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago
Shakespeare, William. Hamlet. Traduções diversas
Fink, Bruce. A clínica lacaniana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor
Miller, Jacques-Alain. Introdução à leitura de Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor
Nasio, Juan-David. O desejo, o gozo e a lei. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Jacques Lacan - Seminário X: A Angústia (1962-1963)

Jacques Lacan - Seminário X: A Angústia (1962-1963) Neste seminário decisivo, Lacan nos convida a olhar de frente aquilo que o sujeito evita: a angústia. Diferente do medo, que tem objeto claro e ameaça externa, a angústia brota do íntimo, do ponto em que o desejo do Outro nos atravessa. Freud dizia que a angústia é sem objeto. Lacan o contradiz: a angústia tem objeto, sim, mas é um objeto estranho, deslocado, um objeto que não é do mundo exterior, e sim um pedaço perdido do sujeito. Este objeto é o famoso objeto a. A angústia se instala quando esse objeto aparece mais do que deveria. Não é sua ausência que angustia, mas sua presença excessiva, invasiva, desmedida. Lacan nos ensina que a angústia é o afeto que não engana. Enquanto os outros afetos podem se disfarçar, podem ser projetados, deslocados, a angústia é pura, direta, sinal do real que se impõe. O sujeito, para Lacan, é um efeito do significante. Ele nasce pela perda, pela entrada na linguagem. Ao ser nomeado, algo de si é a...

Totem e Tabu

Em Totem e Tabu , Freud propõe uma investigação ousada ao buscar correspondências entre o funcionamento psíquico de povos considerados “primitivos” e os processos inconscientes observados em pacientes neuróticos da clínica psicanalítica. A partir de quatro ensaios, ele traça um elo entre o mundo da antropologia e a teoria psicanalítica, inaugurando aquilo que podemos considerar o início de uma antropologia psicanalítica. Essa obra não apenas estende os limites da psicanálise, como propõe que os fundamentos da cultura humana estão enraizados nos conflitos e mecanismos inconscientes que atuam na constituição do sujeito . O primeiro tema central é o totemismo . Freud parte do estudo de sociedades tribais australianas para observar que seus membros se organizam em clãs regidos por um “totem”, geralmente um animal ou planta, que atua como símbolo protetor, ancestral comum e força sagrada. Os membros de um mesmo clã não podem ferir, matar ou consumir seu totem. Além disso, há regras rígida...

Série "8 em Istambul": Um Espelho da Alma Contemporânea

Série "8 em Istambul": Um Espelho da Alma Contemporânea Queridos leitores, hoje lhes trago não apenas a indicação de uma série, mas a partilha de uma travessia. “8 em Istambul” (título original  Bir Başkadır ) não é apenas um produto audiovisual da  Netflix , mas uma pulsação psíquica em forma de drama. Criada e dirigida por  Berkun Oya , estreou em  2020  e traz em seus  8 episódios  uma meditação profunda sobre o inconsciente coletivo de uma sociedade cindida entre tradição e modernidade. É turca em sua forma e humana em seu conteúdo. É Istambul, mas é também São Paulo, Cairo, ou qualquer outra metrópole onde o sagrado e o profano, o patriarcal e o libertário, a palavra e o silêncio, ainda duelam dentro de nós. Sobre o elenco A série conta com atuações profundamente expressivas e humanamente verossímeis.  Öykü Karayel  interpreta  Meryem , uma jovem faxineira que começa a desmaiar sem razão aparente. Seu irmão autoritário,  Yas...