Seminário VI de Lacan: O Desejo e sua Interpretação
No Seminário VI, Lacan finca de vez o estandarte da psicanálise como uma escuta do desejo. O que está em jogo aqui não é apenas uma teoria do desejo, mas um deslocamento ético, clínico e político que recoloca a psicanálise no campo do impossível. Não se trata de compreender o desejo, nem de satisfazê-lo, mas de interpretá-lo, ou melhor, de permitir que ele se diga. O desejo não é algo que se possui. É aquilo que escapa, que desliza, que estrutura o sujeito e que o exila de qualquer completude.
O desejo, diz Lacan, é sempre o desejo do Outro. Essa frase se repete como uma batida de tambor ao longo do seminário. O sujeito deseja aquilo que falta ao Outro, aquilo que ele acredita que o Outro deseja dele. Desejamos por mediação, por fantasia, por linguagem. O desejo não nasce do corpo, mas do campo simbólico. E sua lógica é a da metonímia, da substituição incessante de objetos que nunca satisfazem plenamente. O sujeito deseja porque é faltante, e porque o objeto de seu desejo é, estruturalmente, inacessível.
Lacan conduz neste seminário uma leitura minuciosa do caso Hamlet, de Shakespeare. Não como crítica literária, mas como caso clínico. Hamlet, o príncipe melancólico, é o herói trágico da hesitação, do adiamento, da palavra que não se completa. Ele é aquele que se confronta com o desejo do Outro — o desejo obscuro de sua mãe — e que não consegue realizar o ato que se impõe. Lacan vê em Hamlet a figura do sujeito dividido que não consegue responder à falta do Outro, porque sua própria posição desejante está colapsada.
É aqui que Lacan aprofunda sua teorização sobre a fantasia fundamental. A fantasia é a moldura imaginária onde o desejo se aloja. Ela oferece ao sujeito um lugar onde seu desejo pode existir de forma velada, protegida da angústia. A fórmula da fantasia — $ ◊ a — expressa essa estrutura: o sujeito dividido se confronta com o objeto a, que é a causa de seu desejo. A fantasia organiza o campo do desejo, mas também o encobre. É por isso que a análise não visa destruir a fantasia, mas possibilitar sua travessia. Só ao atravessar sua fantasia fundamental o sujeito se desidentifica do lugar onde foi capturado pelo gozo do Outro e se aproxima da verdade de seu desejo.
O objeto a, aqui, ganha mais consistência conceitual. Ele é aquilo que falta para o gozo ser completo, aquilo que foi perdido na entrada na linguagem. Não é um objeto empírico, mas uma função estrutural. Ele se manifesta no olhar, na voz, no seio, nas fezes, nos restos que o corpo abandona. O objeto a não se recupera. Ele se contorna. E o desejo circula em torno desse vazio, sustentando o sujeito no campo do simbólico.
Lacan discute com profundidade a função da interpretação analítica. Ela não é um esclarecimento, nem uma tradução do inconsciente para o consciente. A interpretação não revela. Ela fura. Ela introduz um corte na cadeia significante, desloca o sujeito, desorganiza o sentido. O bom analista não é o que sabe, mas o que intervém no ponto certo, onde o desejo pode emergir. A interpretação eficaz é poética, equívoca, enigmática. Ela produz uma verdade que não se diz diretamente, mas que se insinua, se dobra, se repete.
O desejo é marcado por sua relação com a lei e com a castração. Desejamos porque perdemos. A castração simbólica — a perda do objeto de gozo absoluto — é o que funda o campo do desejo. Sem a castração, o sujeito ficaria preso à completude imaginária, ao gozo mortífero. A função do Nome-do-Pai é barrar o gozo materno e permitir que o sujeito se posicione como desejante. O desejo é, portanto, o que resta depois da perda. E essa perda é constitutiva.
O Seminário VI também é uma crítica feroz às psicoterapias adaptativas que procuram restaurar o ego ou promover o ajustamento do sujeito à realidade. Lacan afirma com todas as letras: a psicanálise não cura do desejo, ela o sustenta. A análise não é uma moral do bem-estar, mas uma ética da verdade. E essa verdade é sempre parcial, fendida, marcada pela falta. A clínica não visa a harmonia, mas a singularidade do sujeito em sua relação com o desejo que o habita.
Nesse sentido, o analista é aquele que ocupa o lugar da causa do desejo do analisante. Ele não responde, não preenche, não oferece completude. Ele escuta o sujeito em sua divisão e sustenta o vazio necessário para que o desejo se escreva. O setting analítico é o espaço simbólico onde a palavra do sujeito pode se organizar em torno daquilo que falta. O analista interpreta ao tocar o ponto cego do discurso, ao introduzir o silêncio onde o gozo se repete.
Ao longo do seminário, Lacan reafirma a centralidade do desejo na constituição do sujeito. Desejar é existir como falta. O desejo é o que nos move, mas também o que nos fere. Ele nos lança em direção ao Outro, nos inscreve na linguagem, nos separa de qualquer totalidade. A análise é, assim, um caminho ético, onde o sujeito pode se aproximar de seu desejo sem pretender dominá-lo. O sujeito que passa pela análise não se torna mais feliz, mas mais responsável por seu desejo.
O Seminário VI é um canto poético ao desejo como motor da vida. Lacan restitui à psicanálise seu caráter trágico, mas também libertador. Ele mostra que a verdade do sujeito está escrita nas dobras da linguagem, nos lapsos, nos chistes, nos sintomas. E que só ao escutar o desejo que nos atravessa, mesmo quando ele nos fere, é que podemos nos tornar sujeitos de nossa própria história.
Em seguida, A Ética da Psicanálise. Seminário VII. Lacan nos conduz por Antígona e Kant, Sade e o gozo. O bem não guia a psicanálise. O desejo sim. E o desejo é ético. A ética da psicanálise é sustentar o desejo até o fim. Mesmo que o fim seja a morte.
Referências bibliográficas
Lacan, Jacques. O Seminário, Livro 6: O Desejo e sua Interpretação. Inédito em português na íntegra. Acesso em edições espanholas, transcrições e compilações de seminários.
Freud, Sigmund. A interpretação dos sonhos. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago
Shakespeare, William. Hamlet. Traduções diversas
Fink, Bruce. A clínica lacaniana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor
Miller, Jacques-Alain. Introdução à leitura de Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor
Nasio, Juan-David. O desejo, o gozo e a lei. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor
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