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POSTAGENS

Aprofundando as Articulações de Totem e Tabu de Freud com Jacques Lacan e Claude Lévi-Strauss

1. Lévi-Strauss: O estruturalismo e a troca como fundamento da cultura Claude Lévi-Strauss, antropólogo francês, lê Totem e Tabu como uma tentativa pioneira, ainda que especulativa de pensar a origem das estruturas sociais. Em sua obra "As estruturas elementares do parentesco" (1949) , ele retoma a tese freudiana do tabu do incesto, mas desloca o foco do parricídio mítico para a troca de mulheres como base estruturante da sociedade . Para Lévi-Strauss, o tabu do incesto não deve ser visto apenas como proibição, mas como condição de possibilidade para a aliança entre grupos . Ao impedir a união sexual dentro do mesmo clã, a cultura obriga os indivíduos a buscar parceiros fora do grupo — é o que ele chama de exogamia , e isso funda o tecido social. A troca de mulheres é, portanto, a primeira forma de circulação simbólica: ao ceder a mulher, o grupo se insere em uma rede de alianças e obrigações. Lévi-Strauss reconhece a importância de Freud em apontar para uma estrutura inc...

Jacques Lacan – Seminário XIII: O Objeto da Psicanálise (1965-1966)


Jacques Lacan – Seminário XIII: O Objeto da Psicanálise (1965-1966)

Neste seminário, Lacan se lança numa cartografia cada vez mais radical do desejo e do gozo. O que está em questão aqui é o estatuto do objeto, mais precisamente, do objeto a. Já não se trata de um objeto empírico, nem de uma representação interior, mas de um operador estrutural. Um resto, um pedaço que cai, uma perda, mas também a causa que move o desejo. O objeto da psicanálise não é a verdade, nem a cura, mas este enigma central: o objeto que falta e que sustenta o sujeito.

Lacan não cessa de cavar na linguagem o lugar desse objeto. Ele afirma que a psicanálise não trata do ser, mas do que falta no ser. O sujeito só advém a partir dessa falta. Ele é efeito de um corte, de um furo, de uma castração simbólica. E é exatamente neste ponto de perda que o objeto a se instala. Como o seio na oralidade, as fezes na analidade, a voz no campo invocante, o olhar no escópico. O objeto a é sempre parcial, sempre deslocado. Nunca totalizável.

O Seminário XIII é marcado por um retorno à obra de Freud, sobretudo ao texto O Inconsciente e ao caso Dora, mas lido sob o crivo do significante. Lacan desconfia dos psicologismos e retoma a ideia de que o desejo inconsciente se articula na linguagem. O objeto não é algo que se encontra, mas que se perde. O sujeito, para desejar, precisa primeiro perder. Só há objeto de desejo porque algo foi castrado. Só há sujeito porque há uma falta que o funda.

Aqui também se aprofunda a articulação entre gozo e saber. O saber inconsciente é saber sobre o gozo. Mas este saber não é acessível à consciência. Ele se escreve no corpo, nos sintomas, nos atos falhos, nos sonhos, nos fantasmas. E o analista não está ali para explicar ou traduzir, mas para operar cortes que desvelem o lugar desse saber. O inconsciente é um saber que se escreve onde o sujeito falha.

Lacan afirma que o objeto da psicanálise é sempre esse pequeno a. Um objeto que não se dá. Que se contorna. Que se deixa entrever como falta no Outro. Por isso, o amor, o desejo, a fantasia giram em torno dele. E o analista, na transferência, deve suportar encarnar essa função: tornar-se semblante do objeto a, para que o sujeito possa deslocar seu desejo e se reconfigurar.

Neste seminário, Lacan começa a trabalhar o que virá a ser o matema do fantasma: O sujeito barrado em relação ao objeto a. Eis a estrutura fundamental da fantasia, que sustenta o desejo e protege o sujeito do gozo insuportável. Interpretar é atravessar esse fantasma. Não para destruí-lo, mas para abrir espaço a um novo modo de desejar.

Lacan também insinua aqui sua crítica à psicologia do ego e ao ideal do Eu. O eu, o ego, é um efeito do imaginário. Uma ficção narcísica que mascara a verdade do sujeito dividido. A análise não visa fortalecer o eu, mas confrontá-lo com sua falta, com seu inconsciente, com seu objeto perdido.

Há neste seminário um tom de transição. Lacan prepara o terreno para a virada topológica que virá nos anos seguintes. Começa a falar em superfícies, cortes, bordas, e já intui a importância do toro, da banda de Möbius, das estruturas que acolhem o real do gozo. Ele avança no que chama de clínica do real. A linguagem é impotente frente ao real, mas é com ela que se cava o contorno do impossível.

O objeto da psicanálise, então, é aquilo que resta quando tudo falha. É o que não se simboliza. O que insiste. O que causa. O que repuxa o sujeito. O que faz o sintoma durar. É ali que se instala o real da sexualidade, do trauma, do gozo. E o analista não deve querer explicá-lo, mas saber habitá-lo. Sustentar o lugar da falta, do silêncio, do vazio. Não como um déficit, mas como abertura ao desejo.

Este seminário é uma meditação rigorosa e inquieta sobre o que há de mais íntimo e de mais estrangeiro em nós. O objeto a não é um pedaço do mundo, mas o buraco em torno do qual o sujeito se constitui. A análise é a travessia desse buraco. O analista é aquele que se mantém à beira dele, escutando não o que se diz, mas o que falta dizer.

Lacan, com este seminário, prepara o salto. A partir daqui, seu ensino mergulha ainda mais fundo no Real. E a psicanálise, mais do que nunca, se afirma como uma experiência de linguagem, de desejo e de gozo.

Chega o Seminário XIVA Lógica do Fantasma. O sujeito barrado e o objeto a formam o fantasma: $ ◊ a. Fantasia fundamental que sustenta o desejo. O fantasma é defesa, mas também janela. É onde o sujeito se vê, se goza, se perde.

Referências bibliográficas e fontes confiáveis

  1. Lacan, Jacques. Le Séminaire, Livre XIII: L'objet de la psychanalyse (1965-1966). Transcrições não publicadas oficialmente, mas disponíveis em arquivos como Archives Lacan e ICP Lacan.

  2. Freud, Sigmund. O Inconsciente (1915) e Fragmento da Análise de um Caso de Histeria (1905)

  3. Miller, Jacques-Alain. Curso O Outro que não Existe e seus Comitês de Ética

  4. Rassial, Jean-Jacques. O objeto a: ensaios sobre a teoria lacaniana

  5. Zizek, Slavoj. O mais sublime dos histéricos

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