Jacques Lacan – Seminário XVI: De um Outro ao outro (1968-1969)
O título do seminário carrega um duplo deslocamento. De um Outro ao outro marca a passagem de uma instância de saber absoluto, estruturante, à sua desmontagem. O grande Outro, aquele que garante a ordem simbólica, é, no fundo, inconsistente. E o pequeno outro, o semelhante, é capturado na rede do imaginário. Lacan vai mostrar que nenhum dos dois oferece abrigo. O sujeito está entre, no intervalo. E é nesse entre que o real irrompe.
Neste ano, Lacan introduz de forma sistemática os quatro discursos. Discurso do Mestre, do Universitário, da Histeria e da Psicanálise. Cada discurso articula uma maneira de circulação do saber, do gozo, do sujeito e do objeto a. A psicanálise, diz ele, só se sustenta como discurso se não pretender ser um saber total. Seu estatuto é de um saber que fracassa. E é exatamente esse fracasso que a autoriza.
O saber, neste seminário, não é mais puro significante. Ele se encarna no corpo. Passa pelo gozo. Não é saber de algo, mas saber que se goza. Lacan vai afirmar que o inconsciente é saber que não se sabe, mas que insiste. E esse saber tem corpo. Por isso, o que está em jogo na análise é o laço entre saber e gozo. E nesse laço, o significante Uno surge como ruptura. Ele não representa, ele marca.
Lacan retoma a função do traço unário como operador da repetição. É o traço que isola um gozo, que extrai do caos da experiência algo que pode se repetir. Mas essa repetição não é pacífica. Ela fura, ela retorna como angústia, como sintoma, como insistência. E o sintoma é, nesta lógica, uma escrita. Uma escrita do gozo que não encontra lugar no Outro.
Há uma crítica feroz ao ideal universitário. O discurso universitário produz saber, mas esconde o gozo que o sustenta. Ele organiza, classifica, sistematiza. Mas para Lacan, o saber que não toca o real é um saber estéreo. A psicanálise deve ser o avesso desse discurso. O analista ocupa o lugar do objeto a, o resto, a perda, e é só daí que o saber verdadeiro pode emergir.
Neste seminário, Lacan começa a preparar o terreno para o que será sua lógica do não-todo. A mulher não existe, afirma ele. Não porque ela não esteja ali, mas porque o significante mulher é impossível de se totalizar. O gozo feminino escapa à lógica fálica, e por isso é um gozo outro. De um Outro ao outro também é essa travessia: da lógica do falo à lógica do furo.
O campo do gozo é ampliado. Já não é apenas o gozo fálico que estrutura o sujeito. Há um gozo que não passa pelo significante, que não se organiza na função do Nome-do-Pai. Esse gozo é real. E o real não é o mundo das coisas. É aquilo que insiste apesar do simbólico. Aquilo que não cessa de não se inscrever. A análise, portanto, deve conduzir o sujeito não ao sentido, mas à borda desse real.
Lacan fala, ainda, do objeto a como causa do desejo. Ele é o resto, o pedaço arrancado, a parte que falta. É o que move o desejo e o que marca a impossibilidade de sua realização plena. O sujeito se constitui em torno dessa perda. E o analista, ao ocupar esse lugar, deve sustentar a falta, não preenchê-la. O ato analítico só é possível se for fiel a essa estrutura.
No final do seminário, Lacan retorna ao que chamou de lógica da cura. Não se trata de adaptar o sujeito à realidade, mas de levá-lo a se desidentificar do sintoma, a criar com ele um novo saber. Uma invenção. O real não se dissolve, mas pode ser bordejado. E a análise, nesse sentido, é uma travessia que não garante um porto seguro, mas um novo modo de habitar a falta.
O Seminário XVII, O Saber do Analista, insiste que o analista não sabe. Ele sustenta o não-saber. O saber está no inconsciente. O inconsciente fala, mas não diz. A escuta é política. É ação. A interpretação é corte.
Referências confiáveis
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Lacan, Jacques. Le Séminaire, Livre XVI: D’un Autre à l’autre (1968–1969), versão manuscrita não publicada oficialmente. Trechos disponíveis em LacanOnline e Valas.fr.
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Miller, Jacques-Alain. Elucidations of the Four Discourses, seminários de 1999-2000.
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Freud, Sigmund. Além do Princípio do Prazer, sobre a repetição e o gozo.
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Lemos, Cristiano. Lacan: os discursos e o real, ed. Autêntica.
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Colette Soler. Lacan, o discurso e o real.
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