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POSTAGENS

Aprofundando as Articulações de Totem e Tabu de Freud com Jacques Lacan e Claude Lévi-Strauss

1. Lévi-Strauss: O estruturalismo e a troca como fundamento da cultura Claude Lévi-Strauss, antropólogo francês, lê Totem e Tabu como uma tentativa pioneira, ainda que especulativa de pensar a origem das estruturas sociais. Em sua obra "As estruturas elementares do parentesco" (1949) , ele retoma a tese freudiana do tabu do incesto, mas desloca o foco do parricídio mítico para a troca de mulheres como base estruturante da sociedade . Para Lévi-Strauss, o tabu do incesto não deve ser visto apenas como proibição, mas como condição de possibilidade para a aliança entre grupos . Ao impedir a união sexual dentro do mesmo clã, a cultura obriga os indivíduos a buscar parceiros fora do grupo — é o que ele chama de exogamia , e isso funda o tecido social. A troca de mulheres é, portanto, a primeira forma de circulação simbólica: ao ceder a mulher, o grupo se insere em uma rede de alianças e obrigações. Lévi-Strauss reconhece a importância de Freud em apontar para uma estrutura inc...

Jacques Lacan – Seminário XVI: De um Outro ao outro (1968-1969)


Jacques Lacan – Seminário XVI: De um Outro ao outro (1968-1969)

Lacan abre o Seminário XVI com uma guinada topológica. O que se desenha neste ciclo não é apenas uma análise do discurso, mas uma reconfiguração do próprio campo do saber na psicanálise. Ele deixa claro que já não basta falar de inconsciente estruturado como uma linguagem. Agora é preciso pensar o que opera entre os discursos. O que transita, o que escapa, o que falha entre um Outro e outro.

O título do seminário carrega um duplo deslocamento. De um Outro ao outro marca a passagem de uma instância de saber absoluto, estruturante, à sua desmontagem. O grande Outro, aquele que garante a ordem simbólica, é, no fundo, inconsistente. E o pequeno outro, o semelhante, é capturado na rede do imaginário. Lacan vai mostrar que nenhum dos dois oferece abrigo. O sujeito está entre, no intervalo. E é nesse entre que o real irrompe.

Neste ano, Lacan introduz de forma sistemática os quatro discursos. Discurso do Mestre, do Universitário, da Histeria e da Psicanálise. Cada discurso articula uma maneira de circulação do saber, do gozo, do sujeito e do objeto a. A psicanálise, diz ele, só se sustenta como discurso se não pretender ser um saber total. Seu estatuto é de um saber que fracassa. E é exatamente esse fracasso que a autoriza.

O saber, neste seminário, não é mais puro significante. Ele se encarna no corpo. Passa pelo gozo. Não é saber de algo, mas saber que se goza. Lacan vai afirmar que o inconsciente é saber que não se sabe, mas que insiste. E esse saber tem corpo. Por isso, o que está em jogo na análise é o laço entre saber e gozo. E nesse laço, o significante Uno surge como ruptura. Ele não representa, ele marca.

Lacan retoma a função do traço unário como operador da repetição. É o traço que isola um gozo, que extrai do caos da experiência algo que pode se repetir. Mas essa repetição não é pacífica. Ela fura, ela retorna como angústia, como sintoma, como insistência. E o sintoma é, nesta lógica, uma escrita. Uma escrita do gozo que não encontra lugar no Outro.

Há uma crítica feroz ao ideal universitário. O discurso universitário produz saber, mas esconde o gozo que o sustenta. Ele organiza, classifica, sistematiza. Mas para Lacan, o saber que não toca o real é um saber estéreo. A psicanálise deve ser o avesso desse discurso. O analista ocupa o lugar do objeto a, o resto, a perda, e é só daí que o saber verdadeiro pode emergir.

Neste seminário, Lacan começa a preparar o terreno para o que será sua lógica do não-todo. A mulher não existe, afirma ele. Não porque ela não esteja ali, mas porque o significante mulher é impossível de se totalizar. O gozo feminino escapa à lógica fálica, e por isso é um gozo outro. De um Outro ao outro também é essa travessia: da lógica do falo à lógica do furo.

O campo do gozo é ampliado. Já não é apenas o gozo fálico que estrutura o sujeito. Há um gozo que não passa pelo significante, que não se organiza na função do Nome-do-Pai. Esse gozo é real. E o real não é o mundo das coisas. É aquilo que insiste apesar do simbólico. Aquilo que não cessa de não se inscrever. A análise, portanto, deve conduzir o sujeito não ao sentido, mas à borda desse real.

Lacan fala, ainda, do objeto a como causa do desejo. Ele é o resto, o pedaço arrancado, a parte que falta. É o que move o desejo e o que marca a impossibilidade de sua realização plena. O sujeito se constitui em torno dessa perda. E o analista, ao ocupar esse lugar, deve sustentar a falta, não preenchê-la. O ato analítico só é possível se for fiel a essa estrutura.

No final do seminário, Lacan retorna ao que chamou de lógica da cura. Não se trata de adaptar o sujeito à realidade, mas de levá-lo a se desidentificar do sintoma, a criar com ele um novo saber. Uma invenção. O real não se dissolve, mas pode ser bordejado. E a análise, nesse sentido, é uma travessia que não garante um porto seguro, mas um novo modo de habitar a falta.

Seminário XVIIO Saber do Analista, insiste que o analista não sabe. Ele sustenta o não-saber. O saber está no inconsciente. O inconsciente fala, mas não diz. A escuta é política. É ação. A interpretação é corte.

Referências confiáveis

  1. Lacan, Jacques. Le Séminaire, Livre XVI: D’un Autre à l’autre (1968–1969), versão manuscrita não publicada oficialmente. Trechos disponíveis em LacanOnline e Valas.fr.

  2. Miller, Jacques-Alain. Elucidations of the Four Discourses, seminários de 1999-2000.

  3. Freud, Sigmund. Além do Princípio do Prazer, sobre a repetição e o gozo.

  4. Lemos, Cristiano. Lacan: os discursos e o real, ed. Autêntica.

  5. Colette Soler. Lacan, o discurso e o real.

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