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Jacques Lacan - Seminário XXVII: Dissolução


Jacques Lacan - Seminário XXVII: Dissolução (1979–1980)
Neste último murmúrio da obra lacaniana, não há cátedra, não há sala, não há ritual. Há ruína e criação ao mesmo tempo. É o ano da dissolução de sua Escola. Lacan não a abandona por cansaço, mas por um gesto ético, radical. Dissolve sua própria obra institucional como quem reconhece que o desejo não pode ser capturado em molduras. Esse seminário não é como os outros. É feito de cartas, entrevistas, pequenos trechos de falas. É um seminário-fratura. Um corte.

Aqui, Lacan já não fala mais de um lugar de Mestre. Fala como resto. E afirma que a Escola que fundara havia se desviado do que era essencial. A psicanálise, segundo ele, corre sempre o risco de se burocratizar, de se tornar doutrina morta, repetição sem ato. Dissolve a Escola Francesa de Psicanálise para que algo do desejo sobreviva. Esse ato é um gesto clínico. Um ato analítico diante da instituição.

A travessia do seu ensino se conclui assim: com o silêncio ruidoso da retirada. Mas nessa dissolução está a mais alta afirmação do que ensinou. Pois o inconsciente, como diz, não é coisa de comunidade. Não há identificação que sustente a verdade do desejo. Só o que sustenta o desejo é o sinthoma. E é para ele que aponta este seminário-epílogo.

Lacan retoma a ideia de que não há garantia para o analista. Nenhuma Escola forma analistas. Apenas a análise o faz. O analista só se autoriza de si mesmo e de alguns outros. E mesmo esses “outros” são apenas espelhos trincados. A dissolução da Escola é a última escansão de seu tempo lógico. Um corte no laço imaginário para que o real venha à tona.

Ele volta aos nós borromeanos. Volta a Joyce. Volta ao sinthoma como amarra singular que permite ao sujeito não sucumbir à loucura do mundo. A Escola, se não serve ao sinthoma de cada um, serve ao nada. Dissolvê-la é permitir que renasça de outro modo. Em torno do real, e não da identificação ao Nome-do-Pai.

Lacan sabia: o que funda a psicanálise não é o saber, mas a hiância. O furo. A castração. Toda Escola que tenta apagar essa verdade se torna religião. E a religião é a mais refinada forma de recalque. A dissolução não é um fim. É um ato. Um corte necessário. Um retorno à origem ética da psicanálise: sustentar o impossível. Fazer laço com o que não tem nome. Ficar diante do real sem desviar os olhos.

Com esse seminário, Lacan se retira. Mas não abandona. Ele deixa traços. Como o rabino que traça letras no vento para que o mundo se sustente. A psicanálise sobrevive não nas Escolas, mas nos corpos que sustentam o ato. E o ato, como ele ensina, não se representa. Apenas se faz.

Referências confiáveis:

  1. Lacan, Jacques. Lettre de dissolution de l'École Freudienne de Paris, 5 de janeiro de 1980. Publicado em Ornicar?, n. 20, 1980.

  2. Miller, Jacques-Alain. La passe, le semblant et le sinthome, curso de 1980.

  3. Borie, Bertrand. Lacan et la fin de l’analyse, Seuil.

  4. Éric Laurent. La dissolution, acte analytique?, La Cause freudienne, n. 22.

  5. Harari, Roberto. Lacan, a dissidência e o último ensino.

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