Pular para o conteúdo principal

Jacques Lacan - Seminário XI: Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise (1964)

 

Jacques Lacan - Seminário XI: Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise (1964)

Neste seminário, Jacques Lacan oferece a ossatura da experiência analítica. Ele não fala apenas de conceitos, mas da própria travessia do sujeito na análise. Os quatro pilares inconsciente, repetição, transferência e pulsão, não são categorias estáticas, mas engrenagens de um processo. Aqui, Lacan não repete Freud. Ele o reinscreve no campo da linguagem, faz ressoar o inconsciente como estrutura, e prepara o terreno para o que virá: o real, o objeto a, a falta, a ética do desejo.

O primeiro conceito que Lacan aborda é o inconsciente. Desde o início ele o afirma: o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Ele não é um conteúdo escondido, não está no fundo da mente como um porão psíquico, mas se manifesta na superfície: no lapso, no ato falho, na repetição, no sonho. É na linguagem que o sujeito se diz, mesmo sem saber. O inconsciente é um saber que fala no lugar do sujeito, é um saber que se escuta. O sujeito do inconsciente está barrado, cindido, dividido entre o que sabe e o que diz. Ele não se conhece, mas se revela no tropeço da fala. Assim, o inconsciente não é contínuo. Ele se apresenta por cortes, por irrupções, por lampejos. Ele se fecha, se abre, se cala. E só pode ser tocado quando o analista sustenta esse espaço de escuta.

A repetição é o segundo conceito e talvez o mais perturbador. Não é simples retorno do mesmo. Não é o trauma que volta. É o fracasso que insiste. O que se repete é o real que não pode ser simbolizado. A repetição gira em torno do furo, não do conteúdo. Lacan retoma Freud com o jogo do fort-da, aquele movimento da criança que joga e puxa o carretel, simbolizando a perda da mãe. Mas o que está em jogo ali não é a ausência da mãe, e sim o esforço de dar conta da perda, de criar sentido para o que escapa. O sujeito repete não para lembrar, mas para tentar simbolizar o impossível. O real retorna sempre no mesmo lugar porque é ali que a falta insiste.

A repetição não é sem gozo. É gozo que retorna, mesmo como dor. O neurótico, por exemplo, repete o fracasso amoroso, a sabotagem, a culpa. Ele repete porque ali está algo que não se resolve, algo que o fascina. A análise precisa tocar esse ponto da repetição, não para pará-la, mas para que o sujeito a reconheça como efeito de seu desejo. A repetição é o modo como o sujeito se relaciona com sua verdade. E a verdade, diz Lacan, tem estrutura de ficção. Mas é uma ficção que marca.

O terceiro conceito é a transferência, esse fenômeno poderoso e sutil que sustenta a análise. A transferência é amor ao saber suposto no analista. O sujeito acredita que o analista sabe algo de seu desejo, e por isso fala. A transferência é um efeito de discurso, não um sentimento qualquer. É ela que cria o espaço da análise, que move a palavra, que sustenta o desejo de saber. Mas ela também é resistência. O amor ao analista pode paralisar a análise, congelar o desejo. Por isso, o analista deve manejar a transferência com precisão. Não deve ocupar o lugar do ideal, nem se tornar um espelho do eu. Ele deve sustentar o vazio, o ponto de não saber, para que o sujeito se encontre com a verdade de seu desejo. A interpretação analítica, nesse contexto, não é explicação, nem decifração. É corte. A boa interpretação toca o real. Ela desconcerta. Faz o sujeito tropeçar. Ela não revela um sentido oculto. Ela provoca um furo, abre uma borda, desvela uma falta.

O quarto conceito é a pulsão. Freud já nos ensinou que ela não é instinto. Não busca satisfação natural. Ela é tortuosa, parcial, insiste. Lacan retoma essa ideia e mostra que a pulsão é um circuito. Não tem um alvo direto. Ela contorna o objeto. Ela circula em torno do corpo, nas zonas erógenas, nos fragmentos. O objeto da pulsão não é inteiro. É parcial. É o seio que faltou, a voz que escapa, o olhar que atravessa. São pedaços perdidos do corpo, elevadas à condição de causa do desejo. A pulsão é uma volta ao redor da falta. E o sujeito goza no percurso, não no fim. A pulsão é satisfação no desvio, gozo na borda.

Lacan traça um círculo: o sujeito, o inconsciente, o objeto, o real. Todos os conceitos se entrelaçam. Não há análise sem repetição, sem transferência, sem pulsão, sem inconsciente. E não há sujeito sem falta. O que funda o sujeito é a perda. É a entrada na linguagem, que marca, que divide, que nomeia e que exclui. O sujeito se constitui onde algo se perdeu. E esse algo retorna como objeto a, como causa do desejo, como presença inquietante que escapa à captura.

Ao longo do seminário, Lacan apresenta também o conceito de real. O real não é a realidade. O real é o impossível. É o que não se escreve. É o que resiste ao significante. É o ponto onde a linguagem falha. Onde o sujeito se depara com algo que não pode simbolizar. O real é o que escapa ao sentido. Mas é também o que funda o sujeito. O real não é caos. É consistência fora do sentido. É o osso duro da experiência. A análise toca o real. E quando toca, produz um corte. Um novo arranjo simbólico pode surgir.

Neste seminário, Lacan também insinua uma nova função para o analista: ele não é espelho, não é mestre, não é guia moral. Ele é causa do desejo do sujeito. Ele é aquele que encarna o ponto de falta no Outro. Ele sustenta a ausência, o vazio, o buraco. Por isso, sua presença silenciosa é tão potente. O analista opera com o tempo, com a escuta, com o corte. Ele não oferece sentido. Ele abre espaço para que o sujeito produza o seu. E esse espaço é o lugar da verdade, não como revelação, mas como invenção.

O Seminário XI é o coração da psicanálise lacaniana. Ele condensa o saber de Freud, resgata a experiência do inconsciente e projeta a análise para o século que viria. Ele nos diz que não somos senhores de nós mesmos, que algo em nós fala além de nós, que o desejo é estrutural, e que o real nos fura. Mas também nos ensina que, se soubermos escutar, se atravessarmos o fantasma, se enfrentarmos a angústia, podemos tocar algo verdadeiro. A verdade não liberta. Ela fere. Mas nessa ferida há vida. Desejo. Criação.

Seminário XIIProblemas Cruciais para a Psicanálise, desdobra o sentido, o gozo, a interpretação. A linguagem é armadilha. O saber do analista é não saber. A clínica se torna topológica. O simbólico se enrosca no real. O saber do sujeito é saber suposto.

Referências bibliográficas

  1. Lacan, Jacques. Le Séminaire, Livre XI: Les Quatre Concepts Fondamentaux de la Psychanalyse (1964). Paris: Seuil, 1973

  2. Freud, Sigmund. Além do Princípio do Prazer (1920)

  3. Miller, Jacques-Alain. Sutilezas Analíticas — Curso sobre o Seminário XI

  4. Daros, André. Lacan e os Conceitos Fundamentais da Psicanálise. Porto Alegre: Zouk

  5. Soler, Colette. Lacan: O Inconsciente Reinventado

  6. Zizek, Slavoj. O Sujeito Incômodo

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Kierkegaard: O Filósofo da Angústia e da Liberdade

O Pensador que Desnudou a Existência No português do Brasil, a pronúncia mais comum e aceita do nome do filósofo Søren Kierkegaard é:  “Sôren Quírquegaard” Søren : o “ø” dinamarquês soa como o “ô” fechado, então vira “Sô-ren”. Kierkegaard : costuma ser simplificado para “Quírquegaard” (o “d” final geralmente não é pronunciado, porque no dinamarquês original é quase mudo). Na Dinamarca, a pronúncia é bem diferente, algo como “Sôrren Kiérkegô” , mas no Brasil a adaptação fonética acabou consolidando o Sôren Quírquegaard . Søren Kierkegaard é um daqueles nomes que atravessam o tempo como um eco incômodo. Nascido em Copenhague, Dinamarca, em 1813, e falecido em 1855, aos 42 anos, ele viveu pouco, mas deixou uma obra que continua a desafiar a modernidade. Falar de Kierkegaard é mergulhar no terreno da angústia, da fé e da subjetividade, em um caminho que o torna precursor do existencialismo e ainda hoje essencial para compreender as crises do ser humano contemporâneo . A fil...

Erik Erikson: Reflexões sobre Identidade, Vida e Psicanálise

Erik Erikson : Reflexões sobre Identidade, Vida e Psicanálise Falar de Erik Erikson é falar de um homem cuja própria vida já parecia anunciar sua obra. Nascido em Frankfurt, em 1902, filho de mãe dinamarquesa judia e de um pai biológico ausente, cresceu cercado por um sentimento de estranhamento e de busca. Quem sou eu? De onde vim? Questões que qualquer um de nós carrega, mas que, nele, ganharam uma densidade existencial que se transformaria em pensamento científico e clínico. Freud afirmava que “as experiências infantis são a matriz de nossa vida futura”, e não é difícil perceber que a vida de Erikson foi marcada justamente por essa herança de enigmas e ausências. A juventude e o encontro com a psicanálise Na juventude, Erikson mudou-se para Viena. Ali, encontrou Anna Freud, filha de Sigmund Freud, e mergulhou na psicanálise infantil. Esse contato não apenas moldou sua formação, mas lhe abriu os olhos para um olhar mais amplo sobre o desenvolvimento humano. Enquanto a psicanáli...

A Psicanálise e a Tradição Judaica: Reflexões Pessoais

A Psicanálise e a Tradição Judaica: Reflexões Pessoais Sempre me intrigou a maneira como duas tradições aparentemente tão distantes, a psicanálise e a Torá , dialogam em silêncio . Freud abriu as portas da alma humana para o inconsciente, enquanto a Torá, com seus relatos antigos e sua poesia simbólica, já narrava, há milênios, os dilemas internos do homem. Quando mergulho nesses dois universos, sinto que ambos falam da mesma coisa: da nossa fragilidade, da nossa culpa, do desejo que nos move e do mistério que nos habita . Freud dizia que “o Eu não é senhor em sua própria casa”. Essa frase ecoa em mim quando penso em Adão e Eva, escondendo-se após comer do fruto proibido . O primeiro pecado não é apenas teológico, mas psicanalítico: é o surgimento da vergonha, da castração, da consciência de que há algo que nos escapa . A Torá mostra, em sua primeira narrativa, que não somos plenamente donos de nós mesmos, e a psicanálise traduz isso em termos clínicos . Nietzsche, ao criticar a m...

Chistes: o riso como espelho da alma

O que é o riso, senão um grito da alma travestido de leveza? Freud dizia que no chiste há sempre algo de economia psíquica, um desvio astuto do inconsciente que, por uma brecha, encontra sua forma de expressão . Não é à toa que o chiste, esse pequeno arranjo linguístico que nos arranca gargalhadas ou nos faz sorrir em silêncio, revela mais do que aparenta. No mundo acelerado, em que a fala é muitas vezes esvaziada, os chistes emergem como faíscas de verdade. São lampejos que condensam desejo, crítica e inconsciente em um instante . Este artigo convida o leitor a mergulhar nesse território, onde a psicanálise, a filosofia e a vida cotidiana se encontram no jogo de palavras e no prazer da transgressão. Etimologia e significado A palavra “ chiste ” vem do alemão Witz e do latim cistus , associada à ideia de agudeza, espírito e sagacidade. Em português, ganhou a conotação de graça verbal, jogo de palavras ou trocadilho inteligente. Mas reduzir o chiste a uma piada simplória é comet...

O que é Raiva, Ódio, Mágoa, Ressentimento e Alegria na Visão Psicanalítica

O que é Raiva, Ódio, Mágoa, Ressentimento e Alegria na Visão Psicanalítica Em nosso cotidiano, frequentemente confundimos emoções como raiva, ódio, mágoa, ressentimento e alegria. Embora possam parecer semelhantes, cada uma delas possui características distintas que influenciam profundamente nosso comportamento e bem-estar. A psicanálise, fundada por Sigmund Freud, oferece uma perspectiva única para compreender essas emoções, explorando suas origens, manifestações e impactos na psique humana. Neste artigo, vamos analisar cada uma dessas emoções sob a ótica psicanalítica, buscando entender suas nuances e implicações. Raiva: A Primeira Reação à Frustração A raiva é uma emoção primária, geralmente desencadeada por frustrações ou ameaças percebidas. Freud a associava a uma resposta instintiva do ego frente a situações que desafiam seu equilíbrio. Segundo ele, a raiva pode ser uma defesa contra sentimentos de impotência ou humilhação . Em sua obra "O Mal-Estar na Civilização",...

Atravessar o fantasma na psicanálise lacaniana: o encontro com a falta e a liberdade do desejo

Atravessar o fantasma na psicanálise lacaniana: o encontro com a falta e a liberdade do desejo Você já parou para pensar que muito do que chamamos de vida é guiado por um roteiro invisível? Lacan chamou esse roteiro de fantasma. É uma cena interna, quase um teatro silencioso, que dá sentido ao nosso desejo e ao nosso sofrimento. Mas o que acontece quando percebemos que esse teatro não é a vida real, e que somos mais do que o personagem que atuamos? É aqui que entra um dos conceitos mais provocativos da psicanálise lacaniana: atravessar o fantasma. Essa é a experiência em que o sujeito se separa da ilusão que sustenta suas repetições e aceita a falta como algo constitutivo, não para eliminá-la, mas para lidar com ela de forma criativa e responsável. O que é o fantasma para Lacan Na teoria lacaniana, o fantasma é a estrutura imaginária que organiza o desejo . Ele é formado pelas marcas do inconsciente , pelas experiências com o outro e pelas perdas iniciais que moldam nossa subjetiv...

chistes, Atos Falhos, Sonhos e Sintomas

Há algo de fascinante quando penso nos chistes, nos atos falhos, nos sonhos e nos sintomas. Em todos eles, encontro a mesma lógica: o inconsciente não é um lugar obscuro e distante, mas um palco vivo onde a verdade insiste em aparecer, ainda que disfarçada . Freud dizia que “ os chistes são uma liberação de prazer ”, e cada vez que rio de algo aparentemente simples, sinto que ali existe uma mensagem mais profunda, quase uma brecha por onde escapa o indizível. O chiste toca no desejo reprimido, mas o faz de maneira leve, rindo de si mesmo. É a linguagem do inconsciente brincando com as bordas da consciência. Os atos falhos, por sua vez, me inquietam ainda mais. Não são erros banais. Quando digo um nome no lugar de outro ou esqueço uma palavra que parecia óbvia, sei que não se trata de um acaso. Freud insistiu: “o inconsciente fala através do lapso”. Em minha prática clínica, percebo que esses pequenos tropeços revelam muito mais do que discursos elaborados. É como se o inconsciente, si...