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Aprofundando as Articulações de Totem e Tabu de Freud com Jacques Lacan e Claude Lévi-Strauss

1. Lévi-Strauss: O estruturalismo e a troca como fundamento da cultura Claude Lévi-Strauss, antropólogo francês, lê Totem e Tabu como uma tentativa pioneira, ainda que especulativa de pensar a origem das estruturas sociais. Em sua obra "As estruturas elementares do parentesco" (1949) , ele retoma a tese freudiana do tabu do incesto, mas desloca o foco do parricídio mítico para a troca de mulheres como base estruturante da sociedade . Para Lévi-Strauss, o tabu do incesto não deve ser visto apenas como proibição, mas como condição de possibilidade para a aliança entre grupos . Ao impedir a união sexual dentro do mesmo clã, a cultura obriga os indivíduos a buscar parceiros fora do grupo — é o que ele chama de exogamia , e isso funda o tecido social. A troca de mulheres é, portanto, a primeira forma de circulação simbólica: ao ceder a mulher, o grupo se insere em uma rede de alianças e obrigações. Lévi-Strauss reconhece a importância de Freud em apontar para uma estrutura inc...

Seminário II de Lacan: O Eu na Teoria de Freud e na Técnica da Psicanálise


Seminário II de Lacan: O Eu na Teoria de Freud e na Técnica da Psicanálise

Entre 1954 e 1955, Jacques Lacan dá continuidade à sua proposta de retorno a Freud com o segundo seminário, intitulado O Eu na Teoria de Freud e na Técnica da Psicanálise. Trata-se de uma obra fundamental para compreender como Lacan desconstrói o conceito de ego como uma entidade positiva, coerente e confiável, reposicionando-o como uma estrutura imaginária e alienada. Nesse seminário, ele aprofunda sua crítica à tradição pós-freudiana, principalmente à psicologia do ego, defendida por Anna Freud e outros analistas que reduziram a psicanálise a um instrumento de adaptação do sujeito à realidade.

O centro do Seminário II é a tese de que o eu é uma formação imaginária, produto de uma identificação especular que aprisiona o sujeito numa imagem ilusória de unidade. Lacan retoma aqui seu famoso Estádio do Espelho, apresentado anos antes, em 1936, onde descreve a cena em que o bebê, por volta dos seis a dezoito meses, se reconhece diante de um espelho e identifica-se com a imagem refletida. Esse momento funda o eu como um outro, um reflexo idealizado que dá ao sujeito uma ilusão de completude, mas que, na verdade, marca sua divisão.

O eu, portanto, não é o centro do sujeito, mas um efeito de alienação. Ele se constitui no registro do imaginário, no campo das imagens, dos duplos, das simetrias falsas. Lacan insiste que o eu é uma miragem, uma máscara. Ao invés de ser fonte de verdade, o eu é um obstáculo ao desejo inconsciente. A análise não visa fortalecer o eu, como queria a psicologia do ego, mas desestabilizá-lo, fazer com que o sujeito se separe de suas identificações alienantes e se aproxime de seu desejo próprio.

Lacan distingue o eu do sujeito do inconsciente. O eu pertence ao imaginário, o sujeito ao simbólico. Essa distinção é fundamental. O eu quer sentido, quer adaptação, quer prazer. O sujeito do inconsciente, por sua vez, é barrado, é efeito de linguagem, é dividido. Ele se constitui na cadeia significante como falta. Lacan mostra que o sujeito é aquilo que surge entre um significante e outro, como resto, como ausência de identidade fixa.

Nesse seminário, Lacan investiga também o papel da linguagem na constituição do sujeito. A linguagem é o campo do simbólico, o lugar onde o sujeito se inscreve como efeito do significante. O sujeito fala, mas não domina sua fala. Ele é falado pela linguagem. O eu diz “eu”, mas quem fala aí é o Outro. A subjetividade é atravessada por uma alteridade radical. O inconsciente, como estrutura simbólica, manifesta-se por lapsos, atos falhos, chistes, sonhos, sintomas. A escuta analítica deve captar esses cortes, essas falhas, esses tropeços, pois é aí que o sujeito aparece.

Outro ponto essencial do Seminário II é a articulação entre o simbólico, o imaginário e o real. Lacan desenvolve uma topologia psíquica onde o simbólico organiza o sentido, o imaginário seduz com imagens, e o real insiste como aquilo que escapa à simbolização. O real é o impossível, é o ponto de impasse da linguagem, é o que retorna no sintoma como repetição. A análise é o percurso que leva o sujeito a confrontar esse real, não a evitá-lo. Lacan afirma que a verdade tem estrutura de ficção, e é no campo do simbólico que se pode escutar essa ficção com precisão clínica.

Um dos conceitos centrais que aparece nesse seminário é o de metáfora e metonímia. Lacan utiliza a linguística estrutural para mostrar que o inconsciente opera como uma linguagem. A metáfora é o mecanismo do recalque, onde um significante substitui outro e produz sentido novo, como no sintoma. A metonímia é o deslizamento de sentido, o encadeamento da cadeia significante, que sustenta o desejo. O desejo nunca se fixa, ele escapa, desliza, desloca-se. A análise deve acompanhar esse movimento, sem forçar sínteses prematuras.

No Seminário II, Lacan também aprofunda a função do Outro. O Outro com O maiúsculo é o lugar da linguagem, do saber, da lei, da demanda. É nesse Outro que o sujeito se constitui. A criança entra no campo do Outro desde o início, pela voz da mãe, pelo olhar, pelos gestos. O desejo da mãe é a primeira grande incógnita. O Nome-do-Pai aparece como um significante que vem barrar o gozo materno e introduzir a função simbólica da castração. Esse corte funda o desejo do sujeito e permite a entrada na cultura.

A função do analista volta a ser destacada. O analista não interpreta o eu, mas o sujeito. Sua escuta deve ir além da fala do eu, que busca sentido, e acessar o furo da linguagem. O analista é aquele que sustenta a falta, que não se deixa capturar pela demanda do paciente. A análise não deve reforçar o ego, mas abrir espaço para que o sujeito se desloque, se reconstrua, se reescreva. O fim da análise não é a cura no sentido médico, mas a travessia da fantasia e a assunção do desejo.

O Seminário II termina com uma crítica incisiva às práticas que buscam normalizar o sujeito, adaptá-lo, apagar sua singularidade. Lacan defende uma ética da psicanálise que é, acima de tudo, uma ética do desejo. O desejo é o que há de mais íntimo e mais desconhecido no sujeito. A análise é o caminho para que esse desejo possa ser escutado, simbolizado, articulado. Não para ser satisfeito, mas para ser assumido.

Lacan, com esse seminário, consolida as bases de seu ensino. O eu não é o centro, mas o véu. O sujeito é falta. A linguagem é a matriz do inconsciente. O analista é aquele que escuta o que escapa ao sentido. A psicanálise, para Lacan, não é uma técnica de ajustamento, mas uma prática radical de escuta do real. Esse seminário é um convite à coragem de escutar o que não se quer ouvir. É o início de uma jornada onde o sujeito se reencontra com aquilo que o constitui no exato ponto em que ele se perde.

No Seminário III, sobre As Psicoses, Lacan coloca a foraclusão no centro da clínica. O Nome-do-Pai recusado. O sujeito psicótico em confronto com o real sem o amparo do simbólico. Schreber é lido como poesia delirante do Outro em colapso. A linguagem se implode e se recria em cada frase insana.

Referências bibliográficas

Lacan, Jacques. O Seminário, Livro 2: O Eu na Teoria de Freud e na Técnica da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985
Fink, Bruce. A clínica lacaniana: uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997
Roudinesco, Élisabeth. Jacques Lacan: esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento. Rio de Janeiro: Zahar, 1998
Nasio, Juan-David. Lições sobre os sete conceitos cruciais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999
Miller, Jacques-Alain. Introdução à leitura de Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988

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