Seminário III de Lacan: As Psicoses e o Foraclusão do Nome-do-Pai
O Seminário III de Jacques Lacan, intitulado As Psicoses, foi ministrado entre 1955 e 1956 no Hospital Sainte-Anne, em Paris. Nele, Lacan volta seu olhar clínico e teórico para uma das estruturas fundamentais da psicopatologia psicanalítica: a psicose. Mas, como sempre, sua abordagem não se limita a uma descrição de sintomas ou a uma tipologia classificatória. Ele parte da linguagem e da estrutura simbólica para formular uma tese revolucionária: a psicose não é fruto de um conflito intrapsíquico como na neurose, mas de uma falha estrutural na constituição do sujeito, especificamente a foraclusão do significante Nome-do-Pai.
Lacan se apoia fortemente na leitura minuciosa do caso Schreber, célebre texto de Freud de 1911. O caso trata de Daniel Paul Schreber, juiz alemão que, em meio a delírios messiânicos e alucinações, escreveu suas Memórias de um doente dos nervos. Freud interpretou o caso sob a chave do recalcamento e da homossexualidade latente. Lacan, por sua vez, vê em Schreber a chave para compreender a estrutura da psicose como uma exclusão simbólica. Ele propõe que, ao invés do recalcamento, o que ocorre na psicose é a foraclusão. Esse termo, herdado da linguagem jurídica francesa, designa aquilo que foi excluído do campo simbólico e não foi simbolizado.
A foraclusão do Nome-do-Pai significa que o significante fundamental que organiza o campo do Outro simbólico não foi inscrito no sujeito. Em vez de recalcar a Lei, como ocorre no neurótico, o psicótico jamais a integrou. Isso tem consequências decisivas. Sem o Nome-do-Pai, o sujeito psicótico não pode organizar seu desejo dentro da linguagem. Fica à deriva no simbólico. Quando a realidade exige a presença desse significante para lidar com o desejo do Outro, ele retorna no real sob a forma de alucinação ou delírio.
A psicose é, assim, uma tentativa desesperada de reparar essa falha simbólica. O delírio, para Lacan, não é um sintoma no sentido da neurose. É uma tentativa de costurar a estrutura. O psicótico delira para dar sentido ao que não tem lugar no simbólico. O delírio é um trabalho de construção, uma tentativa de reinvenção da realidade a partir do vazio deixado pela foraclusão. Nesse ponto, Lacan inverte completamente a lógica clínica tradicional: o delírio não é pura desorganização, mas uma forma de reorganização estrutural.
No caso Schreber, Lacan observa que o sujeito constrói um universo delirante onde Deus é uma figura que fala diretamente a ele, onde ele é transformado em mulher, e onde o mundo se organiza por meio de raios divinos. Lacan interpreta isso como uma resposta simbólica à ausência do Nome-do-Pai. Deus, no delírio, vem ocupar o lugar deixado vazio pelo significante que deveria regular o desejo. O delírio tem, portanto, uma função de suplência. É uma tentativa de restaurar a ordem perdida.
Lacan aprofunda a noção de estrutura na clínica. Ele insiste que neurose, psicose e perversão não são categorias clínicas baseadas apenas em sintomas, mas estruturas discursivas que se fundam na forma como o sujeito se articula com o significante e com o desejo do Outro. Na neurose, há recalcamento. Na psicose, há foraclusão. Na perversão, há uma denegação da castração. Cada estrutura organiza a relação do sujeito com a lei, com a falta e com o gozo de forma distinta.
O Seminário III também retoma a importância da linguagem. O psicótico fala, mas não entra plenamente no campo do simbólico. Sua fala muitas vezes se organiza fora da lógica linear da linguagem comum. Há rupturas, neologismos, condensações delirantes. A escuta clínica precisa ser capaz de acolher essa fala sem reduzi-la à incoerência. É preciso ler os significantes que emergem no delírio como respostas simbólicas à ausência de uma estrutura ordenadora.
Lacan não busca curar a psicose no sentido médico. Ele propõe uma escuta capaz de sustentar o lugar do Outro sem provocar a irrupção do real. A clínica da psicose exige, portanto, uma ética da contenção. O analista deve estar atento aos momentos em que o simbólico ameaça se romper, deve evitar interpretações precipitadas, deve sustentar a posição de escuta como um ponto de ancoragem para o sujeito psicótico. A análise não visa normalizar, mas possibilitar um modo de habitar a linguagem, mesmo com a falha estrutural presente.
O Nome-do-Pai, conceito central no ensino de Lacan, aparece aqui como ponto de articulação entre o sujeito e o campo do Outro. É o significante que representa a Lei, que interrompe a fusão com o desejo materno, que permite ao sujeito assumir sua posição desejante no campo simbólico. Sua ausência ou sua foraclusão impede essa operação, lançando o sujeito na angústia do sem-limite, na invasão do real, na perda do senso de realidade. O psicótico é aquele que, em determinado momento da vida, encontra-se diante da exigência simbólica que não pode ser respondida porque o significante fundador não está ali.
Ao fim do Seminário III, Lacan deixa claro que a psicose não é um erro do sujeito, não é uma escolha errada, nem uma falha moral. É uma estrutura, e como tal, merece escuta, atenção e respeito. O delírio é um esforço, a alucinação é uma mensagem. A tarefa do analista é escutar esses fenômenos como respostas simbólicas, e não como ruídos sem sentido. Lacan restitui à psicose sua dignidade simbólica. Não há loucura no vazio, há linguagem tentando se recompor.
Esse seminário é uma obra poderosa que desloca as concepções tradicionais da loucura. Ele nos obriga a escutar o delírio como uma criação. A psicose, longe de ser um colapso do sentido, é um esforço para sustentá-lo, mesmo diante do impossível. O Nome-do-Pai, ao não ser inscrito, retorna no real com força devastadora. Cabe ao analista reconhecer essa dinâmica e sustentar o sujeito em sua tentativa de refazer a linguagem do mundo.
Chega o Seminário IV: A Relação de Objeto. O objeto não é coisa. É falta. É causa do desejo. Surge o conceito de objeto a. Objeto do olhar, da voz, do seio, das fezes. Fragmentos que nos faltam e nos movem. O desejo não visa a completude. Deseja porque falta.
Referências bibliográficas
Lacan, Jacques. O Seminário, Livro 3: As Psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985
Freud, Sigmund. Observações sobre um caso de paranoia relatado autobiograficamente (Caso Schreber). In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago
Fink, Bruce. Fundamentos da clínica lacaniana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999
Roudinesco, Élisabeth. Jacques Lacan: esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento. Rio de Janeiro: Zahar
Nasio, Juan-David. O prazer de ler Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor
Miller, Jacques-Alain. Introdução à leitura de Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor
Comentários
Postar um comentário