No outono de 1953, Jacques Lacan inicia seu primeiro seminário no Hospital Sainte-Anne, em Paris, com o título Os escritos técnicos de Freud. Este marco inaugura uma nova forma de transmissão da psicanálise, onde Lacan se propõe não apenas a reler Freud, mas a reconduzi-lo ao centro da linguagem, redimensionando a clínica e o lugar do inconsciente. Este seminário é um mergulho profundo nos textos freudianos, especialmente naqueles que tratam da técnica psicanalítica, da transferência e da função do analista. Mais do que um comentário, trata-se de uma operação teórica que reposiciona toda a prática analítica à luz do simbólico.
Lacan se debruça sobre textos como Recordar, repetir e elaborar, Observações sobre o amor de transferência e A direção do tratamento. Seu objetivo é recolocar a técnica freudiana em seu lugar originário: a palavra. Para Lacan, o inconsciente não é um reservatório de conteúdos recalcados, mas um discurso estruturado. O inconsciente fala. Ele se manifesta nas formações do discurso como o ato falho, o sonho, o chiste, o sintoma. É neste contexto que Lacan lança sua tese central: o inconsciente é estruturado como uma linguagem.
Ao analisar os primeiros escritos técnicos de Freud, Lacan propõe a ideia da fala plena e da fala vazia. A fala plena é aquela em que o sujeito se implica, onde há verdade subjetiva e uma possibilidade de atravessamento do inconsciente. Já a fala vazia é repetição, discurso automático, alienado, colado à demanda do Outro. A escuta analítica deve abrir espaço para que o sujeito vá além da fala vazia, possibilitando o surgimento de um novo posicionamento diante do desejo. A análise, para Lacan, é a travessia da alienação do sujeito em direção a seu desejo próprio.
O lugar do analista é repensado profundamente. Lacan recusa a ideia do analista como conselheiro ou apoio. O analista deve operar como causa do desejo do analisando, não como resposta. Isso significa que sua função não é preencher, mas provocar a falta. A escuta lacaniana é silenciosa, mas afiada. O analista ocupa o lugar do Outro, aquele que escuta sem querer compreender imediatamente, que sustenta a falta e a equivocidade da fala do sujeito. Ele encarna o sujeito suposto saber, uma posição transferencial fundamental onde o paciente deposita o saber de seu próprio desejo.
Neste seminário, Lacan começa também a formalizar os três registros que comporão toda a sua obra: o Imaginário, o Simbólico e o Real. Aqui, o foco está no Simbólico, que é o campo da linguagem, da lei, do Nome-do-Pai. O sujeito é um efeito da cadeia significante. Ele não nasce da biologia, mas da inscrição na linguagem. A entrada na linguagem implica perda, falta, castração simbólica. É neste vazio que o desejo se instala. O desejo não é necessidade nem demanda, é resto. Desejo é aquilo que sobra quando o sujeito fala e não sabe o que disse.
Lacan retoma o famoso caso clínico de Freud, o caso Dora. Sua leitura é crítica. Dora, uma jovem histérica, abandona a análise prematuramente. Lacan vê aí um fracasso técnico de Freud, que não sustentou a função do analista como lugar vazio e simbólico. Freud entrou na cena da transferência, tentou interpretar diretamente, e foi capturado pela demanda da paciente. Para Lacan, esse movimento rompe o processo analítico, pois o analista deve evitar ocupar o lugar da resposta. A transferência não é uma ponte segura, mas uma armadilha. Ela é uma forma de resistência. O paciente transfere ao analista o saber que ele acredita que o analista tem sobre seu desejo, mas esse saber é suposto. É nesta suposição que a análise opera.
Outro ponto central é a introdução da função do significante. Lacan mostra que o sujeito se constitui na cadeia significante. O significante é aquilo que representa o sujeito para outro significante. Isso significa que o sujeito está sempre faltando, pois nunca é plenamente representado. Existe sempre um resto, um ponto de falha, onde o real se inscreve. Essa falha é estrutural. Não é um defeito, mas a condição da subjetividade. Somos seres faltosos, marcados por um furo simbólico que nos lança ao desejo.
A metáfora paterna começa a ser esboçada neste seminário, ainda de forma preliminar. O Nome-do-Pai é aquele significante que intervém para organizar o desejo materno e possibilitar a inscrição do sujeito no campo simbólico. É o corte necessário entre a criança e o gozo absoluto da mãe. Sem esse corte, o sujeito fica preso ao imaginário, ao espelho narcísico, ao campo da alienação. Com esse corte, abre-se o campo do desejo, da linguagem, da alteridade. O sujeito se reconhece como falta, e é nesse reconhecimento que sua subjetividade se constrói.
O Seminário I também apresenta a ideia de que a clínica não se reduz à interpretação de conteúdos. Lacan critica os desvios da psicanálise pós-freudiana, especialmente aqueles que transformaram a análise em uma psicoterapia adaptativa. Para ele, a interpretação deve ser significante, deve tocar o ponto onde o sujeito se divide. A boa interpretação não é a que revela, mas a que desorganiza. Ela desloca, baralha, produz efeitos de sentido, introduz cortes. Ela não explica, ela fura.
Ao final do Seminário I, o que emerge com força é uma nova ética para a psicanálise. Uma ética que não busca o bem-estar, mas a verdade do sujeito. Uma ética da escuta, da falta, do desejo. Lacan propõe que a psicanálise volte a ser subversiva, que se reinstale no campo do simbólico e que se separe definitivamente das psicoterapias de adaptação. Seu retorno a Freud é uma revolução teórica e clínica. Ele não quer modernizar Freud, quer radicalizá-lo. Quer fazer do inconsciente um lugar de escuta rigorosa, onde o sujeito possa se confrontar com aquilo que o habita.
Este primeiro seminário de Lacan é, portanto, uma semente que contém todo o tronco teórico que virá depois. A linguagem como estrutura do inconsciente, o sujeito como efeito do significante, o analista como lugar da falta, a transferência como resistência e a ética da escuta. Tudo está aqui, germinando. E desde já, Lacan nos lembra que o sintoma fala, que o desejo se escuta, e que a psicanálise é, acima de tudo, uma travessia pela palavra.
Segue o Seminário II. O Eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Lacan desfaz o espelho onde o ego se fixa. Mostra que o eu não é senhor, mas efeito. O sujeito é fendido, dividido, deslizando no campo do significante. O real escapa. O simbólico estrutura. O imaginário engana.
Referências bibliográficas
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