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POSTAGENS

Aprofundando as Articulações de Totem e Tabu de Freud com Jacques Lacan e Claude Lévi-Strauss

1. Lévi-Strauss: O estruturalismo e a troca como fundamento da cultura Claude Lévi-Strauss, antropólogo francês, lê Totem e Tabu como uma tentativa pioneira, ainda que especulativa de pensar a origem das estruturas sociais. Em sua obra "As estruturas elementares do parentesco" (1949) , ele retoma a tese freudiana do tabu do incesto, mas desloca o foco do parricídio mítico para a troca de mulheres como base estruturante da sociedade . Para Lévi-Strauss, o tabu do incesto não deve ser visto apenas como proibição, mas como condição de possibilidade para a aliança entre grupos . Ao impedir a união sexual dentro do mesmo clã, a cultura obriga os indivíduos a buscar parceiros fora do grupo — é o que ele chama de exogamia , e isso funda o tecido social. A troca de mulheres é, portanto, a primeira forma de circulação simbólica: ao ceder a mulher, o grupo se insere em uma rede de alianças e obrigações. Lévi-Strauss reconhece a importância de Freud em apontar para uma estrutura inc...

O Seminário IX: A Identificação


O Seminário IX: A Identificação (1961-1962) de Jacques Lacan é uma travessia densa pela articulação do sujeito com o significante, e um mergulho no que Lacan chamará de traço unário marca primeira que inscreve o sujeito na linguagem. Neste seminário, ele continua sua releitura de Freud, sobretudo em relação ao "Ideal do Eu" (Ich-Ideal) e ao "supereu" (Über-Ich), e faz isso pela via do significante e da lógica matemática, chegando até mesmo a flertar com a teoria dos conjuntos.

Lacan parte da ideia de que o sujeito do inconsciente só se constitui por uma operação de corte um traço. Esse traço unário (unary trait, ou em alemão Einziger Zug, expressão usada por Freud) é o que permite a identificação. Ele é a mínima marca simbólica que faz do sujeito algo contável, distinto, separável.

Freud já havia dito que a identificação é a forma mais primitiva de ligação afetiva, anterior mesmo ao investimento libidinal. Lacan retoma essa ideia e radicaliza: a identificação não é apenas uma operação afetiva, mas estrutural. O sujeito é aquilo que resulta da operação do significante sobre o corpo vivo uma inscrição.

O traço unário é essa inscrição mínima, pura diferença, que permite ao sujeito repetir, se reconhecer, se alienar no significante. Quando a criança repete o mesmo gesto, a mesma palavra, a mesma atitude do pai, ela se identifica a esse traço que representa algo do Outro. O Outro aqui é o campo da linguagem, da Lei, do Nome-do-Pai.

Essa operação gera o que Lacan chama de Ideal do Eu (Ich-Ideal): uma instância no Outro à qual o sujeito se refere para saber quem deve ser. É diferente do eu ideal (ou ideal ego), que é o ideal narcísico de perfeição. O Ideal do Eu é mais estrutural, ligado à função do significante, e ao lugar de onde o sujeito se observa e se julga. É o ponto a partir do qual o sujeito se vê como visto, e deseja ser amado.

Nesse jogo simbólico, o significante Uno (S1) é o mestre o primeiro significante, o que representa o sujeito para outro significante (S2). É a lógica que Lacan vai formalizar com suas fórmulas da sexuação, mas que aqui começa a despontar como o ponto de fixação subjetiva: o sujeito é representado por um significante para outro significante. Ou seja: o sujeito se constitui por ser “falado”, nomeado, mas nessa nomeação ele perde algo ele é dividido.

A identificação, então, é esse processo de fixação ao traço. O sujeito se constitui a partir da repetição desse traço unário um significante que pode ser o nome do pai, um atributo, uma letra, algo que o liga à cadeia significante e que o submete à Lei.

Lacan também se apoia na lógica de Russell, Cantor e Frege, buscando uma formalização do sujeito como lugar vazio, puro suporte da função significante. A ideia do conjunto vazio do zero como origem da contagem é crucial para pensar o sujeito lacaniano: ele não é algo dado, mas um efeito da contagem simbólica, da marca, da diferença.

Na identificação, há sempre uma perda. Porque identificar-se é renunciar à plenitude, é escolher um lugar na cadeia simbólica, é tornar-se contável e, portanto, finito. É por isso que o traço unário também tem algo de mortificante: ele corta, separa, cria o sujeito pela exclusão do gozo total.

O gozo, aliás, aparece aqui como aquilo que escapa ao significante, mas que insiste o gozo do corpo, da voz, da imagem. Mas o sujeito só pode se aproximar disso pela via do significante, e isso o leva ao mal-estar, ao desejo, à castração.

O Seminário IX é o limiar de uma virada na obra de Lacan. A partir daqui, ele começa a preparar o terreno para a teoria dos discursos, para a topologia do sujeito e para a escrita do nó borromeano. Mas já aqui, vemos que o sujeito não é um "eu" unificado, mas um efeito de linguagem, uma rachadura entre o Uno do significante e o múltiplo do gozo.

Então, A AngústiaSeminário X. A angústia não engana. Ela é sinal do real. O objeto a aparece ali onde o desejo falha. A angústia mostra o que não pode ser simbolizado. O analista, nesse ponto, é causa e não sujeito. Ele sustenta o ponto de horror, de furo. O objeto a é aquilo que se perde e se reencontra no sintoma.

Referências bibliográficas:

  1. Lacan, J. Le Séminaire, Livre IX: L’Identification (1961-1962). Inédito em português oficialmente, mas há traduções não-oficiais circulando em grupos de estudos.

  2. Freud, S. Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921).

  3. Miller, J.-A. Introdução ao Seminário IX de Lacan: A Identificação (aulas disponíveis nos arquivos da École de la Cause Freudienne).

  4. Safatle, V. Lacan: Esquizoanálise e Estrutura do Sujeito. SP: Boitempo.

  5. Le Gaufey, G. O Traço e o Nome. RJ: Contra Capa, 2001.

  6. Nasio, J.-D. Os Cinco Conceitos Fundamentais da Psicanálise. SP: Zahar.

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