De que forma o sujeito lida com o seu desejo

De que forma o sujeito lida com o seu desejo

De que forma o sujeito lida com o seu desejo

"A psicanálise não oferece respostas prontas porque o desejo não suporta manuais. Ela oferece tempo, escuta e responsabilidade subjetiva."

O desejo é uma palavra simples, curta, quase doméstica. Mas quando ela entra no consultório, muda de tom. O desejo não chega educado, não pede licença, não segue roteiro. Ele aparece torto, atrasado, disfarçado de sintoma, ansiedade, tédio, compulsão, depressão ou aquela frase clássica que todo clínico já ouviu: “eu não sei o que eu quero”. Essa frase, aliás, já diz muita coisa. O sujeito moderno não sofre por falta de desejo. Sofre porque não sabe o que fazer com ele.

Freud foi direto desde o início. O desejo nasce do conflito. Não existe desejo puro, transparente, consciente. O desejo é atravessado pela falta, pelo recalque, pela interdição. Ele não aponta para um objeto claro, mas para algo perdido, algo que nunca foi totalmente possuído. Por isso o sujeito vive tentando tapar buracos com objetos, relações, trabalho, consumo ou performances. A clínica mostra todos os dias que o problema não é desejar demais, mas tentar silenciar o desejo a qualquer custo.

Lacan radicaliza esse ponto ao afirmar que o desejo é sempre desejo do Outro. Não no sentido banal de querer agradar, mas porque o sujeito só aprende a desejar a partir da linguagem, da cultura e das marcas deixadas pelos outros significativos. O sujeito não nasce sabendo o que quer. Ele aprende a querer tentando decifrar o que o Outro quer dele. Daí surgem escolhas que parecem livres, mas são repetições inconscientes. Pessoas que escolhem sempre o mesmo tipo de parceiro e sofrem do mesmo jeito. Profissionais brilhantes que sabotam a própria carreira quando estão prestes a realizar algo importante. O desejo insiste, mas o sujeito foge.

Winnicott ajuda a entender esse movimento quando fala do falso self. Muitos pacientes não sofrem porque desejam algo proibido, mas porque nunca puderam desejar de verdade. Aprenderam cedo demais a se adaptar, a corresponder, a ser aquilo que o ambiente esperava. Crescem funcionais, eficientes, elogiados, e profundamente vazios. O desejo verdadeiro fica soterrado, esperando uma escuta que não exija performance. Na clínica, quando esse desejo começa a aparecer, não vem como euforia. Vem como angústia. E isso assusta.

Bion lembra que pensar dói. Desejar também. O sujeito tenta fugir do desejo porque ele exige tolerar frustração, dúvida e falta de garantia. É mais fácil anestesiar. Byung-Chul Han descreve bem esse cenário ao mostrar como a sociedade do desempenho transforma o desejo em obrigação. Hoje o sujeito não deseja, ele se cobra para desejar. Tem que querer mais, ser mais, aproveitar mais. O resultado é exaustão psíquica. Um desejo sem silêncio vira ruído.

A filosofia já sabia disso muito antes da psicanálise. Platão dizia que o desejo nasce da falta e que tentar preenchê-lo de forma direta é um engano. Aristóteles lembrava que desejar sem medida leva ao excesso e à perda do eixo ético. Nietzsche, por outro lado, provoca ao mostrar que reprimir o desejo em nome da moral gera ressentimento e adoecimento. Heidegger desloca a questão ao afirmar que o humano não é um ser que deseja objetos, mas um ser lançado no mundo, atravessado por possibilidades e finitude. Desejar é lidar com o tempo e com a morte, e isso não é confortável.

A neurociência contemporânea ajuda a tirar o desejo do campo da abstração. Jaak Panksepp mostra que o sistema SEEKING, ligado à dopamina, é o motor da curiosidade e da busca. O problema é quando esse sistema é sequestrado por estímulos rápidos e artificiais. O sujeito confunde desejo com excitação. Mark Solms aprofunda isso ao afirmar que o afeto é a base da mente. O desejo não nasce do pensamento racional, mas de estados corporais afetivos. Antonio Damasio reforça que decisões, escolhas e desejos são organizados pelo corpo antes de chegarem à consciência.

Na prática clínica, isso aparece de forma crua. Pacientes que dizem querer mudar, mas entram em pânico quando a mudança começa a acontecer. Outros que afirmam não desejar nada, mas vivem inquietos, irritados, sempre insatisfeitos. O desejo não some. Ele se desloca. Quando não pode ser simbolizado, vira sintoma. Quando não é escutado, vira sofrimento.

Lidar com o desejo não é realizá-lo cegamente nem reprimi-lo em nome de um ideal. É sustentar a pergunta. O que eu quero e por que quero isso? O que desse desejo é meu e o que é herança, demanda ou expectativa do Outro? A psicanálise não oferece respostas prontas porque o desejo não suporta manuais. Ela oferece tempo, escuta e responsabilidade subjetiva.

Talvez a maior tarefa do sujeito contemporâneo seja reaprender a desejar sem culpa, sem pressa e sem garantias. Desejar sabendo que nem todo desejo será satisfeito, mas que ignorá-lo cobra um preço alto demais. O desejo não pede soluções rápidas. Ele pede coragem para ser escutado.

Referências Bibliográficas

Lacan, J. O Seminário, Livro 11: Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. Zahar.
Winnicott, D. W. O Brincar e a Realidade. Imago.
Bion, W. R. Aprender com a Experiência. Imago.
Platão. O Banquete. Fundação Calouste Gulbenkian.
Aristóteles. Ética a Nicômaco. Martin Claret.
Nietzsche, F. Genealogia da Moral. Companhia das Letras.
Heidegger, M. Ser e Tempo. Vozes.
Han, B. C. Sociedade do Cansaço. Vozes.
Panksepp, J. Affective Neuroscience. Oxford University Press.
Solms, M. The Hidden Spring. W. W. Norton & Company.
Damasio, A. O Erro de Descartes. Companhia das Letras.

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