O desejo e o falso self em Winnicott

 O desejo e o falso self em Winnicott
O desejo e o falso self em Winnicott

Poucas ideias em psicanálise são tão atuais quanto a noção de falso self formulada por Donald Winnicott. Basta abrir a porta do consultório para perceber que grande parte do sofrimento contemporâneo não nasce de conflitos explosivos, mas de um silenciamento lento do desejo. O sujeito chega funcional, educado, produtivo, aparentemente ajustado, mas com uma sensação persistente de vazio. Vive, trabalha, se relaciona, mas não se sente vivo. Quando fala, algo soa correto demais. Quando deseja, hesita. Quando escolhe, parece sempre escolher para alguém.

Winnicott foi preciso ao mostrar que o falso self não é uma patologia em si. Ele nasce como uma solução. Diante de um ambiente que falha em acolher os gestos espontâneos do bebê, a criança aprende cedo demais a se adaptar. Aprende a responder ao desejo do outro antes mesmo de reconhecer o próprio. Esse movimento garante sobrevivência psíquica, mas cobra um preço alto: o afastamento progressivo do verdadeiro self, lugar onde o desejo pode emergir de forma criativa e viva.

Na clínica, isso aparece de maneira quase didática. Pacientes que dizem não saber o que querem, mas sabem muito bem o que não podem querer. Pessoas que organizam a vida inteira em função de expectativas externas, da família, do trabalho, do olhar social, e que entram em colapso quando se veem diante de uma escolha realmente própria. O desejo, nesses casos, não desapareceu. Ele foi encapsulado. Ficou à espera de um ambiente suficientemente bom para reaparecer.

Freud já havia mostrado que o desejo sofre os efeitos do recalque. Winnicott vai além e aponta que, em certos casos, o desejo nem chega a se constituir plenamente. Não se trata apenas de reprimir algo que é proibido, mas de nunca ter tido espaço para desejar. Lacan diria que o sujeito fica preso demais ao desejo do Outro, sem conseguir se separar. Bion acrescentaria que faltou um continente capaz de transformar a experiência emocional bruta em algo pensável. O resultado é um sujeito que funciona, mas não sente pertencimento à própria vida.

O falso self se manifesta de forma elegante. Ele é eficiente, simpático, responsável. Não cria problemas. É o tipo de pessoa que todos elogiam. O problema é que, por dentro, algo não pulsa. Winnicott foi claro ao afirmar que, quando o falso self domina, a vida perde o sentido de realidade. O sujeito existe, mas não se sente real. E aqui o desejo é o termômetro mais sensível. Onde não há desejo próprio, há adaptação excessiva.

A filosofia ajuda a iluminar esse ponto. Heidegger falava do modo impessoal de existência, o famoso “se vive assim”. O falso self é profundamente impessoal. Ele vive como se deve viver. Hannah Arendt alertava para o perigo da perda da singularidade em nome da adequação. Nietzsche, com sua habitual brutalidade, diria que aí nasce o ressentimento, uma vida não vivida que se transforma em amargura silenciosa. Byung-Chul Han atualiza essa discussão ao mostrar como a sociedade do desempenho estimula falsos selfs altamente produtivos, exaustos e desconectados do desejo.

A neurociência contemporânea oferece uma base interessante para esse diálogo. Jaak Panksepp mostrou que o sistema SEEKING é fundamental para a vitalidade psíquica. Quando esse sistema é inibido precocemente, o sujeito perde a curiosidade e a sensação de direção. Mark Solms reforça que o afeto é o núcleo da experiência subjetiva. Um self que não pode sentir livremente também não pode desejar. Antonio Damasio demonstra que decisões e escolhas autênticas dependem da integração entre emoção e consciência. Onde o falso self domina, essa integração falha.

O trabalho clínico com o falso self exige tempo e paciência. Não se trata de incentivar o sujeito a “seguir seus desejos” de forma ingênua, como prometem discursos motivacionais baratos. Trata-se de criar um espaço onde o desejo possa surgir sem ser imediatamente julgado, corrigido ou instrumentalizado. Muitas vezes, o primeiro sinal de contato com o verdadeiro self não é prazer, mas angústia, confusão e até tédio. O desejo verdadeiro não é espetacular. Ele é simples, silencioso e profundamente comprometido com a singularidade do sujeito.

Winnicott nos ensina que a saúde psíquica não está na adaptação perfeita, mas na capacidade de viver criativamente. Criatividade aqui não é produzir obras de arte, mas sentir que a vida é própria. O desejo, nesse sentido, não é um luxo. É um indicador de existência. Onde o desejo não pode aparecer, o falso self governa. Onde o desejo começa a ser escutado, algo do verdadeiro self encontra espaço para respirar.

Talvez uma das tarefas mais difíceis do sujeito contemporâneo seja desaprender a agradar para reaprender a desejar. Isso não se faz com pressa, nem com fórmulas prontas. Exige escuta, frustração, silêncio e coragem. O falso self não cai de uma vez. Ele se afrouxa aos poucos, à medida que o sujeito percebe que viver apenas para corresponder é uma forma elegante de desaparecer.

Referências Bibliográficas

Winnicott, D. W. O Brincar e a Realidade. Imago.
Winnicott, D. W. Da Pediatria à Psicanálise. Imago.
Freud, S. O Ego e o Id. Imago.
Lacan, J. O Seminário, Livro 11: Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. Zahar.
Bion, W. R. Aprender com a Experiência. Imago.
Heidegger, M. Ser e Tempo. Vozes.
Arendt, H. A Condição Humana. Forense Universitária.
Nietzsche, F. Genealogia da Moral. Companhia das Letras.
Han, B. C. Sociedade do Cansaço. Vozes.
Panksepp, J. Affective Neuroscience. Oxford University Press.
Solms, M. The Hidden Spring. W. W. Norton & Company.
Damasio, A. O Erro de Descartes. Companhia das Letras.

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