Violência Neuronal por Byung-Chul Han
Violência neuronal e autoimposição neoliberal: quando o sujeito é seu próprio carrasco
Quando afirmo que hoje a violência cerebral já não vem de fora, mas de dentro, você pode pensar que estou sendo dramático. Mas é justamente isso que Byung-Chul Han propõe: a sociedade neoliberal impõe ao sujeito um regime silencioso de autoexploração que adoece o sistema nervoso, funda sofrimentos íntimos e torna o indivíduo inimigo de si mesmo. A violência neuronal da autoimposição é uma ferida interna: é o “dever ser” internalizado como tirania.
Para atravessar essa crítica, precisamos conhecer o filósofo que a enuncia e também sua leitura no Brasil feita por pensadores contemporâneos como Lucas Nascimento Machado.
Byung-Chul Han: vida, pensamento e obra
Byung-Chul Han nasceu em Seul (Coreia do Sul) em 1959. (Wikipedia) Na juventude, ele estudou metalurgia na Coreia, antes de migrar para a Alemanha, nos anos 1980, onde passou a estudar filosofia, literatura alemã e teologia católica nas universidades de Friburgo e Munique. (Wikipedia) Em 1994, obteve seu doutorado em Friburgo com uma tese sobre Martin Heidegger, intitulada Heideggers Herz. Zum Begriff der Stimmung bei Martin Heidegger. (Wikipédia) Posteriormente, fez sua habilitação em filosofia na Universidade de Basileia, Suíça. (Wikipedia)
Ele lecionou em diversas instituições e atualmente é professor de Filosofia e Estudos Culturais na Universität der Künste (Universidade das Artes) em Berlim. (ourworld.unu.edu) A obra de Han é vasta e percorre temas como exaustão, digitalização, transparência, poder, subjetividade e violência. (ourworld.unu.edu) Alguns de seus livros mais conhecidos são A Sociedade do Cansaço (ou The Burnout Society), Psicopolítica, A Sociedade da Transparência, A Agonia do Eros, Topologia da Violência, In the Swarm: Digital Prospects e O Aroma do Tempo. (MIT Press) Sua escrita é marcada por ensaios curtos, estilo aforístico, e uma crítica ácida ao paradigma neoliberal, que promete liberdade mas impõe obrigação. (The Philosopher) Em 2025, foi agraciado com o Prêmio Princesa de Astúrias de Comunicação e Humanidades, reconhecimento de sua influência nas reflexões contemporâneas. (fpa.es)
Han propõe que deixamos a era da sociedade disciplinar (onde a proibição e o “não podes” outorgavam formas de poder) para entrar numa era da sociedade do desempenho, na qual o máximo de liberdade aparente serve justamente para que o indivíduo se autoexplore. Essa autoexploração funda uma violência neuronal: a mente torna-se campo de guerra entre o desejo que eleva e o superego que cobra, entre o querer produzir e o corpo/mente que se exaure.
Lucas Nascimento Machado: quem é e como lê Han
Lucas Nascimento Machado é filósofo brasileiro, graduado, mestre e doutor em Filosofia pela FFLCH/USP. (Casa do Saber) Atualmente é professor da UFRJ, diretor da Associação Latino-Americana de Filosofia Intercultural (ALAFI), e tradutor de algumas das obras de Byung-Chul Han para o português. (Casa do Saber) Ele ministra cursos sobre a filosofia de Han, como “A Filosofia de Byung-Chul Han”, e examina criticamente os dilemas centrais do pensamento haniano. (Casa do Saber) Sua tese A forma determinante (2020) dialoga com o próprio Han, analisando como algumas categorias fundamentais do filósofo extrapolam suas formulações iniciais. (Biblioteca Digital USP) Em seus artigos, Machado também articula o pensamento de Han com noções de filosofia como modo de vida (philosophy as way of life), conectado ao filósofo Pierre Hadot, apontando como a crítica ao neoliberalismo se insere numa tradição antiga de cultivo da sabedoria. (PhilPapers)
Em Da Afabilidade ao Inferno do Igual: Uma Introdução Crítica à Filosofia de Byung-Chul Han, Machado aponta que existe uma divisão na obra de Han entre uma fase pré-“Sociedade do Cansaço” e a fase posterior, em que certas formulações (como a oposição entre existência econômica e existência afável) se reconfiguram. (Academia USP) Para Machado, entender Han exige reconhecer essa transição e perceber que o que parece inalterado ao longo de todo seu pensamento são tensões entre positividade e negatividade, entre excesso e vazio. (Academia USP)
Machado, portanto, nos permite reler Han não como um sujeito que produz críticas monolíticas, mas como alguém que, ao longo do tempo, refina sua abordagem da violência subjetiva, da ética e da contemplação em meio à cultura do desempenho.
O que é a violência neuronal da autoimposição
A ideia central que unifica boa parte do pensamento de Han é que, na sociedade do desempenho, não há necessidade de um agente externo que oprima. O sujeito impõe a si mesmo exigências ilimitadas: produzir mais, ser mais, estar perfeito, estar conectado, estar feliz. Essa autoimposição neutraliza o antagonismo externo o inimigo se torna interno.
A violência neuronal, então, é uma agressão que se dá nas sinapses, no sistema límbico, nas estruturas psíquicas. É a pressão para que o sujeito se supere continuamente, converta seu tempo livre em projeto produtivo, esconda sintomas, negue sua fadiga e mantenha a fachada da positividade. Essa violência se manifesta em burnout, depressão, ansiedade, esgotamento nervoso.
Na lógica neoliberal, não basta obedecer: é necessário internalizar o comando. Obedecer a si mesmo. E por isso esse tipo de dominação é particularmente sutil, por se mascarar como liberdade. Você acha que escolheu se matar de trabalhar, mas na verdade foi coagido por um ideal interiorizado de eficiência.
Paralelo com a psicanálise: o superego e o sofrimento interior
A psicanálise nos ensina que o superego exerce seu poder não por coerção violenta, mas por exigência moral: o superego exige, pune e torna o sujeito culpado. O que Han descreve como autoimposição é o superego em estado neoliberal: ele exige não a proibição, mas o “tu podes mais”.
Freud já assinalara que o superego pode ser tirânico, severo e conflituoso. Na modernidade neoliberal, essa tirania se converte em autoexploração. O sujeito não se revolta contra o superego porque acredita que ele representa sua própria liberdade. Por isso sua culpabilidade é profunda: fracassar não é apenas falhar, é trair a si mesmo.
A psicanálise oferece uma via de escuta para essa violência neuronal: tornar consciente essa tirania interna, trazer à linguagem o imperativo oculto. O divã é um contragolpe ao imperativo subjetivo: ali a exigência se suspende, o sujeito pode falhar, sofrer, chorar. A autoimposição cede lugar à palavra, e a violência neuronal pode ser pensada e transformada.
Crítica e mediações de Machado
Lucas Machado enriquece essa articulação ao mostrar que a obra de Han não é homogênea: há rupturas conceituais, revisões e reorientações. Enquanto Han critica a lógica da eficiência e da positividade, Machado examina como Han introduz a dimensão da contemplação, da alteridade e da pausa como remédio à tirania do tempo.
Para Machado, não basta denunciar a autoimposição; é preciso propor práticas de escuta, de presença e uma filosofia que se viva, não apenas que se leia. Ele resgata a noção de filosofia como modo de vida (inspirado em Hadot) para mostrar que o antídoto à violência neuronal não é mais eficiência estratégica, mas reorientação da sensibilidade, cuidado de si, abertura ao silêncio.
Final: questionamentos para o leitor
A violência neuronal da autoimposição nos convoca a uma pergunta incômoda: será que a liberdade que perseguimos não é uma cilada? Se acreditamos que podemos tudo, acabamos por exigir de nós mesmos o impossível. Essa exigência, internalizada, nos consome.
Byung-Chul Han nos oferece o diagnóstico frio: o sujeito contemporâneo é prisioneiro de si mesmo. Lucas Machado nos oferece uma mediação: não é suficiente diagnosticar, é urgente cultivar resistência interior.
E você, leitor, qual voz interior tem imposto seu ritmo? Quem você escuta mais o desejo genuíno ou o superego neoliberal? Talvez seja hora de recusar a marcha acelerada, aprender a pausar e gravar no corpo que a verdadeira liberdade não se expressa na produtividade absoluta, mas na abertura ao tempo, ao erro e ao silêncio.
Referências bibliográficas
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Han, Byung-Chul. A Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, edição brasileira.
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Han, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Petrópolis: Vozes.
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Han, Byung-Chul. A Sociedade da Transparência. São Paulo: (edição brasileira).
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Han, Byung-Chul. A Agonia do Eros. (edição Brasil).
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Han, Byung-Chul. Topologia da Violência.
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Machado, Lucas Nascimento. A forma determinante (tese, 2020).
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Machado, Lucas Nascimento; “Da Afabilidade ao Inferno do Igual: Uma Introdução Crítica à Filosofia de Byung-Chul Han” (Revista Sísifo, 2021).
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Machado, Lucas Nascimento. “To Know Is To Be – Wisdom in Philosophy as a Way of Life and Its Implications for our Understanding of Knowledge”, Eidos: A Journal for Philosophy of Culture, vol. 8, n. 4, 2024.

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