Melanie Klein e as Crianças - O conflito não espera a linguagem

Melanie Klein - O conflito não espera a linguagem
Melanie Klein não escolheu as crianças por delicadeza, vocação maternal ou idealismo pedagógico. Ela foi empurrada até elas pela própria dor. Antes de ser teórica, Klein foi uma mulher atravessada por perdas, depressão e um sentimento persistente de desamparo interno. É desse ponto, nada romântico, que nasce sua pergunta fundamental. O que acontece tão cedo na vida que nos marca para sempre? Freud havia aberto a porta do inconsciente, mas ainda mantinha o bebê num quase silêncio teórico. Klein não aceitou esse atraso. Algo nela sabia que o conflito não espera a linguagem.

O primeiro empurrão veio da própria análise. Ao se deitar no divã de Sándor Ferenczi, Melanie Klein encontra um analista que ousava escutar para além do protocolo. Ferenczi já desconfiava de que o sofrimento psíquico se organizava muito antes da infância tardia. Ele percebeu em Klein uma intuição clínica rara e a incentivou a trabalhar com crianças, algo ainda visto com enorme desconfiança no início do século XX. Não se tratava de ensinar boas maneiras emocionais, mas de escutar o inconsciente onde ele ainda não sabia falar.

Há um dado biográfico que não pode ser ignorado. Klein era mãe. E sua relação com os filhos, especialmente com a filha Melitta, foi marcada por conflitos intensos, ambivalência, amor e hostilidade. Klein observava, na prática cotidiana, que a criança não era um ser inocente no sentido moral do termo. Havia ódio, ciúme, fantasia de destruição, culpa e desejo de reparação muito cedo. A clínica veio confirmar aquilo que a vida doméstica já mostrava sem anestesia. A criança não é um adulto inacabado. Ela é um sujeito psíquico pleno, desde o início.

Quando Klein começa a atender crianças, primeiro em Budapeste e depois em Berlim, ela se depara com um problema técnico central. A criança não associa livremente como o adulto. Não fala de sonhos longos, não elabora narrativas simbólicas sofisticadas. Em vez disso, brinca. Klein tem então um gesto teórico decisivo. Ela escuta o brincar como linguagem do inconsciente. O brinquedo vira palavra, o gesto vira frase, a repetição vira sintoma. A partir daí, não há mais volta. A infância deixa de ser um território pré-psíquico e passa a ser o coração da vida mental.

O que levou Klein a escrever sobre as crianças foi a constatação clínica brutal de que o conflito psíquico nasce cedo, cedo demais. Ela percebeu que o bebê já vive fantasias inconscientes de ataque ao objeto, especialmente ao seio materno, vivido ora como fonte de vida, ora como perseguidor. A angústia não espera o Édipo. A culpa não depende da moral. O superego, para Klein, se forma precocemente, duro, sádico, exigente. Essa visão não nasce de especulação abstrata, mas da escuta direta da clínica infantil.

Ao escrever sobre crianças, Klein estava, na verdade, escrevendo sobre o humano em sua forma mais nua. O adulto neurótico, o paciente deprimido, o sujeito melancólico que aparece no consultório carrega essas mesmas estruturas primitivas, apenas recobertas por linguagem, defesas mais sofisticadas e racionalizações elegantes. A criança, ao contrário, mostra tudo sem disfarce. O ódio aparece cru. O amor aparece desesperado. A culpa aparece sem verniz moral.

Há também um movimento silencioso de ruptura. Ao se dedicar às crianças, Klein rompe com a ideia dominante de que a psicanálise deveria esperar a maturação do ego. Ela aposta no risco. E paga o preço. Sua obra provoca resistência feroz, especialmente por parte de Anna Freud, que via a criança como alguém ainda em formação egóica e dependente de intervenção pedagógica. Klein recusa esse caminho. Para ela, interpretar não é educar. É escutar o inconsciente em ato.

Escrever sobre crianças foi, para Melanie Klein, uma forma de dizer algo maior. Que o sofrimento humano não começa quando falhamos como adultos, mas quando tentamos amar sob o impacto das pulsões mais primitivas. Que a saúde psíquica não é pureza, mas capacidade de reparar. E que a infância não é um paraíso perdido, mas o campo inaugural da nossa luta entre amor e destruição.

Ao final, Klein escreve sobre crianças porque elas revelam aquilo que o adulto passa a vida tentando esconder. O fato de que amar sempre envolve ódio. Que depender do outro dói. E que crescer não é eliminar o conflito, mas aprender a não destruir o objeto do qual se depende para viver.

Leia também a obra de Melanie Klein - A psicanálise de crianças (1932) e Narrativa da análise de uma criança (1961). Clique Aqui! 

Referências bibliográficas
Klein, M. Psicanálise da criança. São Paulo: Martins Fontes.
Klein, M. Amor, culpa e reparação. Rio de Janeiro: Imago.
Klein, M. Inveja e gratidão. Rio de Janeiro: Imago.
Segal, H. Introdução à obra de Melanie Klein. Rio de Janeiro: Imago.
Mitchell, J. Melanie Klein. São Paulo: Loyola.
Fonagy, P. et al. Afeto, regulação e o desenvolvimento do self. Porto Alegre: Artmed.

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