Estóicos e existencialistas modernos: entre o controle do que depende de nós e o peso de existir

Estóicos e existencialistas modernos: entre o controle do que depende de nós e o peso de existir
Estóicos e existencialistas modernos: entre o controle do que depende de nós e o peso de existir

Há momentos no consultório em que a filosofia chega antes do diagnóstico. O sujeito fala de angústia, de impotência, de uma sensação difusa de estar fora do próprio eixo, e aquilo não é apenas um sintoma individual. É um mal-estar que atravessa épocas. Nessas horas, duas tradições filosóficas retornam com força quase clínica: o estoicismo antigo e o existencialismo moderno. Distantes no tempo, mas curiosamente próximos naquilo que realmente importa: como sustentar a vida quando ela não obedece aos nossos desejos.

O estoicismo nasce na Grécia, por volta do século III antes de Cristo, com Zenão de Cítio, e se desenvolve em um mundo instável, marcado por guerras, crises políticas e perdas de referências. Não é um detalhe histórico irrelevante. O estoicismo não surge em tempos confortáveis. Ele nasce quando a ideia de controle desmorona. Seu conceito central é simples e duro: há coisas que dependem de nós e coisas que não dependem. A sabedoria está em não confundir uma com a outra.

Epicteto, um escravo que se tornou filósofo, levou essa ideia ao limite. Para ele, liberdade não é fazer o que se quer, mas não ser escravizado pelo que não se pode controlar. Sêneca, mais pragmático, tentou aplicar isso à vida política, ao luto, ao sofrimento cotidiano. Marco Aurélio, imperador romano, escreveu para si mesmo, em silêncio, como quem tenta não enlouquecer no poder. O estoicismo não prometia felicidade. Prometia dignidade diante do inevitável.

Clinicamente, isso aparece todos os dias. Pessoas adoecidas tentando controlar o outro, o passado, o futuro, o acaso. Sofrem menos pelo que acontece e mais pela fantasia de que deveriam ter evitado. O estoicismo oferece algo que a psicanálise também oferece: a aceitação do limite. Freud nunca foi estoico, mas quando fala da renúncia pulsional necessária à civilização, toca no mesmo ponto. Viver é perder. Negar isso custa caro.

Séculos depois, em um outro cenário de ruínas, o existencialismo moderno emerge com força, especialmente no século XX, após guerras mundiais, genocídios e a falência de grandes narrativas. Kierkegaard já havia preparado o terreno ao afirmar que a angústia é constitutiva da existência. Mas é com Heidegger, Sartre, Camus e Simone de Beauvoir que o existencialismo ganha corpo. Aqui, o problema não é mais apenas o que não controlamos, mas o peso da liberdade.

Heidegger desloca a questão ao afirmar que o ser humano é um ser lançado no mundo, sem manual, sem garantias, condenado a escolher. Sartre radicaliza ao dizer que estamos condenados à liberdade. Não escolher já é uma escolha. Camus encara o absurdo de frente e recusa tanto o suicídio quanto as ilusões metafísicas. Viver é sustentar o sem sentido sem fugir dele. Isso não é pessimismo. É lucidez.

Na clínica, o existencialismo aparece quando o sujeito diz que nada faz sentido, mas continua vivendo. Ou quando se paralisa diante de escolhas, esperando uma certeza que nunca virá. A angústia existencial não é patológica em si. Ela se torna patológica quando o sujeito tenta eliminá-la em vez de escutá-la. Lacan diria que a angústia não engana. Heidegger diria que ela revela o ser.

O diálogo entre estoicos e existencialistas é mais rico do que parece. Os estoicos ensinam a distinguir o que depende de nós. Os existencialistas lembram que, mesmo assim, somos responsáveis pelo que fazemos com isso. Um aponta o limite, o outro aponta a escolha. Entre um e outro, a psicanálise se move, escutando o desejo, o inconsciente, as repetições e as fugas.

Winnicott ajuda a pensar isso clinicamente quando fala da capacidade de estar só e de viver criativamente. Um sujeito que não suporta o vazio foge do limite. Um sujeito que não suporta a liberdade se esconde na adaptação excessiva. Bion diria que pensar dói exatamente porque implica tolerar a incerteza. Byung-Chul Han atualiza essa discussão ao mostrar como a sociedade do desempenho aboliu o limite e transformou a liberdade em obrigação. O resultado é exaustão, não emancipação.

A neurociência contemporânea acrescenta camadas interessantes. Antonio Damasio mostra que decisões não são puramente racionais. Elas dependem de marcadores somáticos, de afetos. Jaak Panksepp demonstra que a vitalidade psíquica depende do sistema SEEKING, da capacidade de buscar mesmo sem garantias. Mark Solms aproxima isso da psicanálise ao afirmar que o afeto é a base da mente. Onde não há afeto, não há escolha real. Onde tudo é controle ou tudo é liberdade abstrata, o sujeito colapsa.

O estoicismo moderno, tão popular nas redes sociais, muitas vezes vira caricatura. Frases prontas, negação do sofrimento, um verniz de força que esconde repressão emocional. O existencialismo, quando mal compreendido, vira niilismo estéril. Nenhum dos dois serve como técnica de autoajuda. Ambos são convites à responsabilidade. E responsabilidade não é conforto.

Entre aceitar o que não depende de nós e assumir o que depende, o sujeito constrói sua ética singular. Nem resignação cega, nem delírio de onipotência. A clínica não forma estóicos nem existencialistas. Ela ajuda o sujeito a sustentar a própria existência sem terceirizar a dor e sem romantizar o sofrimento.

Talvez o ponto de encontro mais honesto entre essas tradições seja este: viver exige coragem. Coragem para perder, para escolher, para falhar e para continuar. Não há filosofia que poupe o humano disso. E talvez seja exatamente por isso que essas ideias seguem tão vivas. Elas não prometem salvação. Oferecem lucidez. E isso, em tempos de soluções rápidas, já é muito.

Referências Bibliográficas

Epicteto. Manual. Martin Claret.
Sêneca. Cartas a Lucílio. Penguin Classics.
Marco Aurélio. Meditações. Martin Claret.
Kierkegaard, S. O Conceito de Angústia. Vozes.
Heidegger, M. Ser e Tempo. Vozes.
Sartre, J. P. O Existencialismo é um Humanismo. Vozes.
Camus, A. O Mito de Sísifo. Record.
Arendt, H. A Condição Humana. Forense Universitária.
Freud, S. O Mal-Estar na Civilização. Imago.
Winnicott, D. W. O Brincar e a Realidade. Imago.
Bion, W. R. Aprender com a Experiência. Imago.
Han, B. C. Sociedade do Cansaço. Vozes.
Damasio, A. O Erro de Descartes. Companhia das Letras.
Panksepp, J. Affective Neuroscience. Oxford University Press.
Solms, M. The Hidden Spring. W. W. Norton & Company.

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