Protocolo Escada: O SUS e o Cuidado com Quem Cuida
Um novo olhar sobre o sofrimento silencioso dos cuidadores
Em 2025, o Sistema Único de Saúde (SUS) dá um passo inédito ao implementar o protocolo “Escada” (Estratégias para Cuidadores em Demência), desenvolvido pelo Hospital Alemão Oswaldo Cruz e inspirado no modelo britânico Start (Strategies for Relatives). Essa iniciativa pioneira chega em um momento crucial, em que o envelhecimento populacional desafia não apenas o sistema de saúde, mas também a estrutura emocional e psíquica das famílias brasileiras. O foco do protocolo é claro: cuidar de quem cuida.
A demência, com destaque para o Alzheimer, não atinge apenas o idoso diagnosticado; ela contamina a atmosfera emocional da casa. O cuidador, quase sempre um familiar, mergulha em uma rotina exaustiva, onde o tempo se dilui entre o amor e o dever. Segundo a psiquiatra Cleusa Ferri, responsável pela implementação do projeto, o sofrimento desses cuidadores é profundo, frequentemente acompanhado por angústia, ansiedade, depressão e sentimento de impotência. O protocolo Escada busca atenuar essa sobrecarga emocional, ensinando estratégias cognitivas e afetivas de enfrentamento em oito sessões estruturadas, conduzidas por agentes comunitários de saúde especialmente treinados.
O desafio emocional do cuidador: entre o amor e a exaustão
Na perspectiva psicanalítica, cuidar de alguém com demência é confrontar-se com a perda simbólica do outro. O familiar deixa de ser o que era e passa a ocupar um lugar de dependência, desorganização e esquecimento. Para o cuidador, essa perda é dupla: ele cuida do corpo de quem ama, mas já não encontra nele o sujeito que conhecia. Sigmund Freud, em “Luto e Melancolia”, descreve que o luto não é apenas a dor pela ausência física, mas pela perda do objeto de amor no mundo interno. Cuidar de um idoso com demência é viver um luto contínuo, diário, um processo de despedida que se repete a cada esquecimento.
O protocolo Escada atua justamente nesse ponto, ao permitir que o cuidador reconheça e acolha suas próprias emoções. As sessões abordam o autoconhecimento, o manejo da culpa e o reconhecimento dos limites pessoais. Técnicas de relaxamento, respiração e meditação são utilizadas como recursos para aliviar a tensão corporal, enquanto exercícios de reflexão incentivam a retomada de atividades prazerosas. Essa combinação de ciência e cuidado emocional se alinha à ideia psicanalítica de “função continente” descrita por Wilfred Bion, que compreende o ato terapêutico como a capacidade de sustentar a dor e transformá-la em significado.
O olhar da neuropsicanálise: o cérebro sob pressão
A neuropsicanálise, campo que integra o saber da neurologia com a teoria psicanalítica, oferece um novo entendimento sobre o impacto da sobrecarga emocional no cérebro dos cuidadores. Pesquisas conduzidas por Mark Solms mostram que o estresse crônico ativa o sistema límbico, especialmente a amígdala e o hipotálamo, elevando os níveis de cortisol e reduzindo a capacidade de regulação emocional. A mente do cuidador, em constante estado de alerta, entra em colapso silencioso.
O protocolo Escada introduz práticas de autorregulação que reduzem esse impacto, estimulando a neuroplasticidade positiva e reequilibrando o sistema nervoso. Quando o cuidador aprende a respirar conscientemente, a reconhecer os gatilhos emocionais e a nomear seus sentimentos, ele fortalece circuitos neurais ligados ao córtex pré-frontal, região associada à empatia, ao julgamento e ao autocontrole. Assim, a neuropsicanálise confirma o que Freud já intuía: o sofrimento psíquico não é apenas simbólico, é também biológico.
A filosofia do cuidado: o ser que se doa e se perde
Na dimensão filosófica, cuidar é um ato de transcendência. Martin Heidegger, em “Ser e Tempo”, define o cuidado (Sorge) como a essência do ser humano, pois é na relação com o outro que nos reconhecemos como seres no mundo. O cuidador, no entanto, vive o paradoxo de cuidar até o limite de se perder de si. Ele se dissolve na rotina, nas demandas e nas dores alheias, esquecendo que também precisa ser cuidado.
O protocolo Escada devolve ao cuidador o direito de existir como sujeito. Ao incentivar o autocuidado, o programa não apenas previne o adoecimento mental, mas também reestabelece a dignidade do ato de cuidar. O cuidado deixa de ser sacrifício e passa a ser escolha consciente, um exercício ético e existencial. Friedrich Nietzsche, em sua filosofia da superação, diria que esse gesto é um “sim à vida”, mesmo diante da dor. É afirmar a potência de existir apesar do cansaço, é encontrar sentido onde antes só havia exaustão.
A implementação no Brasil e o impacto social
O projeto-piloto do protocolo Escada está sendo implementado em sete cidades brasileiras: Vitória (ES), Manaus (AM), Chapecó (SC), Teresina (PI), Cuiabá (MT), Guarapuava (PR) e Benevides (PA). Cada uma dessas localidades representa uma realidade socioeconômica distinta, o que amplia o alcance do estudo e reforça o compromisso do SUS com a equidade.
Os agentes comunitários de saúde, figuras centrais nesse processo, são capacitados para aplicar o protocolo junto aos cuidadores, promovendo escuta empática e orientação prática. Essa descentralização do cuidado rompe a lógica hospitalocêntrica e aproxima a saúde mental da comunidade, transformando a dor individual em aprendizado coletivo.
O impacto esperado é profundo: cuidadores emocionalmente equilibrados cuidam melhor, e isso reflete diretamente na qualidade de vida dos idosos com demência. Em longo prazo, o protocolo pode reduzir internações, aliviar os custos do sistema e, acima de tudo, humanizar a saúde pública brasileira.
Conclusão: cuidar de quem cuida é um ato de amor e consciência
A implementação do protocolo Escada pelo SUS é mais que uma política de saúde; é um gesto civilizatório. É reconhecer que o sofrimento psíquico do cuidador não é invisível e que cuidar exige também saber pausar. Sob a luz da psicanálise, da neuropsicanálise e da filosofia, percebemos que o cuidado verdadeiro nasce do equilíbrio entre empatia e autoconservação.
Cuidar do outro sem perder a si mesmo é a mais alta forma de sabedoria. O cuidador é o guardião da dignidade humana, e o Escada é o instrumento que o ajuda a lembrar que, antes de ser cuidador, ele é pessoa, alguém que sente, pensa, sofre e ama. O cuidado, portanto, é um espelho: ao cuidar do outro, cuidamos também de nossa própria humanidade.
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O Cérebro e o Mundo Interno – Mark Solms e Oliver Turnbull.
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Cuidar de Si para Cuidar do Outro – Leonardo Boff.
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Luto e Melancolia – Sigmund Freud.

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