Psicanálise Online: como a tecnologia está transformando a clínica e o inconsciente
Psicanálise Online: como a tecnologia está transformando a clínica e o inconsciente
Desde que a tecnologia se tornou parte integrante da vida cotidiana, com vídeo-chamadas, redes sociais, aplicativos de mensagens, muitos domínios do humano foram atravessados de formas inesperadas. A psicanálise, que desde Freud se vale de um setting bastante específico para permitir ao inconsciente se manifestar, não poderia ficar imune a essas transformações. O atendimento psicanalítico mediado pela tela traz consigo possibilidades inéditas e também desafios profundos. Neste post, vamos explorar como a psicanálise online está transformando a clínica e o inconsciente, olhando para o setting digital, para as alterações na transferência e contratransferência, para as questões éticas envolvidas e para as novas formas de subjetivação que emergem nesse cenário.
O setting analítico na era digital
Quando falamos de setting na psicanálise, nos referimos a um conjunto de elementos estruturantes: o espaço físico, a regularidade das sessões, o tempo, a disposição (como o divã ou não), o silêncio, a presença do analista, o enquadre tudo isso que cria condições para que o sujeito fale, revele, escute, relacione-se com seus afetos inconscientes.
No atendimento online, muitos desses elementos são deslocados. A tela divide o espaço: há interferências externas (barulhos, interrupções domésticas, falta de isolamento físico), a presença do analista depende de conexão, de vídeo, de áudio, de luz, imagem. O silêncio pode ser interrompido por ruídos tecnológicos, por travamentos, pela falta de resposta imediata em caso de queda de sinal nem sempre em função do paciente.
Ainda assim, vários psicanalistas e artigos destacam que o setting analítico não se perde completamente nessa mediação. Em “Análise On-Line: possibilidades e limites da transferência na clínica virtual” (PUC Minas) se observa que, apesar das mudanças, a relação transferencial pode se manter. (Periódicos PUC Minas) A ideia é que a tecnicidade (a ferramenta digital) seja incorporada ao setting não como acidente, mas como parte da clínica quando bem pensado.
Uma questão-chave é: como manter a regularidade? O compromisso mútuo de horário e frequência pode perder sustentação se o ambiente doméstico ou virtual for instável. O analista precisa combinar com o analisando elementos como ambiente silencioso, privacidade, minimização de interrupções, e aceitar que alguns desses elementos escapam ao seu controle. Esse é o primeiro nó que se descortina nessa clínica mediada digitalmente.
Transferência e contratransferência mediadas pela tela
O que são transferência e contratransferência
Antes de entrar nas especificidades da clínica virtual, vale recapitular os conceitos clássicos:
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Transferência: para Freud, é o fato de o analisando projetar no analista sentimentos, fantasias, afetos que originalmente pertenciam a figuras importantes de sua história: pais, cuidadores, etc. É pelos conteúdos transferenciais que o inconsciente fala.
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Contratransferência: originalmente tratada por Freud como algo a ser dominado ou controlado, aquilo que o paciente evoca no analista, afetos inconscientes que nele se movem. Hoje reconhece-se que a contratransferência é parte integral da clínica, um instrumento que pode ajudar a compreender o paciente (ou, se não cuidadoso, interferir no tratamento). (Revistas USC)
Como a transferência se altera no online
Na clínica virtual, a transferência pode manifestar‐se de formas parecidas às da clínica presencial: desejo, idealização, repulsão, ciúmes, dependência, etc. No entanto, a mediação digital introduz variações:
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O analisante pode sentir mais insegurança ou dúvida em relação à presença do analista, já que sua imagem e voz dependem da tecnologia. Pode haver uma sensação de proximidade diferente (às vezes mais íntima, por se verem em ambientes pessoais) ou de distância acentuada (pela impessoalidade da tela).
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A idealização ou reprovação podem se projetar não apenas contra o analista, mas contra aspectos técnicos: “se você sumiu na ligação”, “se vi o analista em vídeo com interrupções”, “se voz fica distorcida”, tudo isso pode ganhar valor simbólico transferencial.
Contratransferência no setting digital
O analista também se vê afetado de maneiras diferentes:
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Ele pode experimentar frustração, impotência, raiva ou culpa diante de falhas técnicas: queda de conexão, áudio ruim, ilusões de abandono ou de rejeição por parte do paciente que podem não ser intencionais.
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O analista deve estar especialmente atento às suas próprias reações por exemplo, se começar a se sentir ansioso, disperso ou desconectado, pode ser sintoma de contratransferência provocada pelas dificuldades tecnológicas ou pelo ambiente virtual inóspito.
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Há também uma nova exigência de presença subjetiva: mesmo pela tela, o paciente espera ver algo de cuidado, de escuta, de constância. Isso implica cuidado com luz, imagem, postura, gesto, voz, elementos que no presencial ocorrem de modo mais automático.
Exemplos clínicos e observações
No estudo da PUC Minas citado, entrevistados repararam que a transferência permanece, mas se transforma: muda a qualidade da presença, do vínculo, do silêncio, do tempo subjetivo. A escuta necessita de adaptação: o analista ouvirá mais intensamente, talvez precise repetir, checar se o paciente foi ouvido, checar se houve mal entendido por ruídos ou interrupções. (Periódicos PUC Minas)
Privacidade e ética na análise online
Com a tecnologia entram riscos derivados do digital, falhas de segurança, vazamento de imagem ou áudio, invasão de privacidade, uso indevido de gravações, etc.
Principais dilemas éticos
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Confidencialidade: garantir que a plataforma usada seja segura, que não haja interferência de terceiros, que os dados trocados (vídeo, mensagem, áudio) não sejam armazenados sem consentimento, ou usados para outros fins.
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Consentimento informado: é importante que o analisando saiba explicitamente, antes de iniciar o atendimento online, quais são os riscos (tecnológicos, de privacidade), os limites da ferramenta, o que acontece se houver falha de conexão ou se houver interrupção inesperada.
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Limites da disponibilidade: no online, pode haver a expectativa de maior disponibilidade (mensagens fora de hora, urgências via apps, etc.). O analista deve delimitar claramente seus horários, como será o contato em emergências, etc.
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Ambiente físico: tanto do lado do analisando quanto do analista. Idealmente, o paciente deve ter espaço com privacidade, ausência de interrupções, ambiente que assegure sensação de segurança. Do outro lado, o analista também precisa garantir sua própria privacidade, presença calma, sem distrações visuais ou sonoras diante da câmera.
Possibilidades éticas positivas
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A tecnologia permite alcance: analisandos em regiões distantes, que não têm analistas perto, ou com mobilidade reduzida, podem ter acesso ao tratamento psicanalítico.
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Em alguns casos, o anonimato ou a sensação de invisibilidade parcial (como não aparecer em vídeo, ou estar em ambiente próprio) podem facilitar certos pacientes a se expressarem de modo mais livre, revelando angústias ou afetos que talvez abrissem menos no presencial.
Subjetividades digitais: o self, o virtual, o performativo
A era digital não só muda como fazemos análise, mas também quem somos enquanto sujeitos. Aqui entram os modos de subjetividade que emergem nas redes, nos perfis, nos avatares, na exposição e na vigilância, nas constantes comparações.
Self performático e exposição
Nas redes sociais, no vídeo, no perfil pessoal ou profissional, as pessoas muitas vezes experimentam-se para uma plateia. A apresentação de si tende ao performático: escolher o que mostrar, editar a imagem, cuidar da “marca pessoal”. Isso tem efeitos sobre o inconsciente: fantasias de reconhecimento, de idealização, de ser visto. Alguns sujeitos podem trazer ao setting esperado este modo de ser visto, este tipo de desejo ou angústia que nasceu no mundo digital seus efeitos sobre autoestima, narcisismo, inveja, escárnio, etc.
Fantasias mediadas por redes, algoritmos, telas
Filmes, memes, comparações de vidas no Instagram ou TikTok, influenciadores, tudo isso constrói fantasias: do corpo ideal, da vida ideal, do sucesso ideal. Essas fantasias são internalizadas, às vezes inconscientemente, e fazem parte das queixas que chegam à clínica: ansiedade, depressão, sensação de insuficiência, solidão. No setting online, essas fantasias podem ganhar espaço também no modo como o paciente espera ser percebido pelo analista.
Identidade híbrida, barreiras e oportunidades
Alguns pacientes se sentem mais livres para explorar partes de si em contexto virtual: talvez expor uma parte mais íntima, ou então se proteger atrás de anonimato parcial quando necessário. Mas essa liberdade pode ter seu custo sentimento de dissociação, fragmentação, ou de desconfiança: “quem está do outro lado da tela?”, “vejo imagem, mas não sinto presença?”.
Conclusão
A psicanálise online não é uma adaptação superficial nem uma “solução provisória”: ela exige uma reconfiguração de muitos dos elementos que pensávamos como fixos. O setting é renovado, sem ser destruído; a transferência persiste mas se transforma; a contratransferência se faz mais visível nos detalhes do que antes talvez imaginávamos. Questões éticas ganham urgência; subjetividades digitais emergem com novo vigor, trazendo fantasias, desejos, angústias próprias.
Para quem pratica psicanálise, essas transformações demandam consciência, adaptação, estudo contínuo. Para quem procura psicanálise, exigem cuidado na escolha do analista, entendimento do formato virtual, compromisso com a estrutura e com os próprios limites.
Pergunta para reflexão: como saberemos, no futuro, quais manifestações do inconsciente nasceram ou foram amplificadas pela era digital? E até onde podemos pensar que o inconsciente também habita telas, dados, redes?
Referências
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Análise On-Line: possibilidades e limites da transferência na clínica virtual. Letícia Borges da Costa Santos & Danúbia Zanetti. Revista Pretextos, PUC Minas. (Periódicos PUC Minas)
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Transferência e Contratransferência: Implicações Éticas na Prática Psicanalítica. G. C. D. Lopes & P. C. P. Lopes. Revista Multidisciplinar do UniSantaCruz. (Revistas USC)
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Sobre a noção de contratransferência em psicanálise. Vera Lúcia Decnop Coelho. Revista Psicologia: Teoria e Pesquisa, Universidade de Brasília. (Portal de Periódicos da UnB)
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Transferência e Contratransferência: A Evolução do Conceito e Sua Prática na Clínica Psicanalítica. Franciele Aparecida dos Santos & Edilene Lima. Revista Uningá. (Revista Uninga)
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Contratransferência: uma revisitação. Maria Cristina Dias. Revista Mineira de Psicanálise, 2021. (SBPMG)

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