Pierre Marty entre corpo e psique

Pierre Marty entre corpo e psique
Pierre Marty entre corpo e psique

Em português o nome Pierre Marty se pronuncia aproximadamente como “Piéʁ Mar-ti”, onde:

  • “Piéʁ” - o “Pie” soa como “pié” (com som de “é” fechado) e o “r” do estilo francês final, levemente gutural ou vibrante no fundo da garganta;

  • “Mar-ti” - “Mar” com “a” aberto (como em “árvore”) e “ti” com “i” curto, “mar-ti”.

Logo: Pié-r Mar-ti.

Quem foi Pierre Marty? Ele nasceu em 11 de março de 1918, em Saint-Céré, França, e faleceu em 14 de junho de 1993, em Villejuif (ou arredores de Paris). (Wikipédia) Ele foi médico psiquiatra e psicanalista, integrante da Société psychanalytique de Paris (SPP), chegando a exercer cargos de liderança nessa instituição. (Enciclopédia) Durante a década de 1950 já participava da emergência de uma “escola psicossomática” em Paris, juntamente com colegas como Michel Fain, Michel de M’Uzan e Christian David. (shs.cairn.info) Em 1972 fundou, com Michel Fain, o Instituto de Psicossomática de Paris (IPSO), que viria a ser seu legado institucional. (ipso-marty.org)

Legado e contribuições centrais

Pierre Marty é reconhecido por articular o corpo que adoece à psique que adoece, por elaborar uma clínica que escuta o sintoma corporal como mensagem simbólica, e não como mera consequência orgânica. Sua obra ocupa um lugar singular entre psicanálise clássica, medicina psicossomática e uma sensibilidade clínica que valoriza a inserção do corpo no discurso mental.

Alguns conceitos fundamentais de sua teoria:

  • A relação de objeto alérgica: formulada por Marty na década de 1950, trata de uma maneira extrema de vínculo com o objeto, em que a assimilação se dá quase por absorção imediata, gerando confusão entre sujeito e objeto, e fragilizando fronteiras internas. (ipso-marty.org)

  • A pensée opératoire (pensamento operatório), elaborada com Michel de M’Uzan, descreve um modo de funcionamento mental pobre em simbolização, voltado ao factual e ao concreto, exaurido de fantasia. (ipso-marty.org)

  • A depressão essencial, identificada por Marty, corresponde a um estado depressivo sem sintomas clássicos evidentes, marcado por colapso do tônus vital e perda dos investimentos narcisísticos e objetais. (ipso-marty.org)

  • Sua economia psicossomática propõe uma noção de pulsão revisitada: pulsões de vida são forças de organização, crescimento e complexificação, enquanto pulsões de morte operam no movimento oposto, induzindo desorganização e fragmentação. (ipso-marty.org)

  • Marty introduziu um uso precoce do termo mentalização, numa acepção clínica ligada ao trabalho de elaboração psíquica e à capacidade de simbolizar afetos e conflitos internos. (Wikipédia)

Ele compôs uma tipologia de funcionamento mental que situa pacientes em níveis variados de capacidade de elaboração simbólica: desde neuroses mais “elaboradas” até quadros psicossomáticos graves. Essa orientação clínica permite ao terapeuta calibrar intervenções diagnósticas e técnicas segundo a estrutura psíquica real do indivíduo.

Sua escrita tem reputação de densidade e exigência. Marty preferia o ato clínico à produção teórica. Muitos de seus alunos afirmam que a transmissão de sua obra se fez sobretudo por análise supervisionada, seminários e reuniões clínicas, mais do que por textos literários claros. (ipso-marty.org)

Entre suas amizades e interlocuções íntimas figuram Michel Fain, Michel de M’Uzan e Christian David. Maurice Bouvet era também figura próxima: Marty, aliás, cofundou o Prêmio Maurice Bouvet, outorgado a trabalhos psicanalíticos em língua francesa. (Enciclopédia) Catherine Parat aparece entre suas colaboradoras e discípulas no contexto da escola psicossomática em Paris. (Wikipédia)

Obras relevantes incluem La Psychosomatique de l’adulte (coleção Que sais-je ?), L’Ordre psychosomatique, L’Investigation psychosomatique (em coautoria com de M’Uzan e David) além de artigos como La pensée opératoire, Relation d’objet allergique e Dépression essentielle. (shs.cairn.info)

Entre psicanálise, neuropsicanálise e filosofia: um prisma triplo

A partir de Freud, a psicanálise concebeu pulsões, conflitos e simbolização. Marty retoma esses elementos, mas os reinventa ao inseri-los no corpo doente. Ele desafia versões idealistas da psicanálise que descontariam a materialidade corporal ou o tratariam como secundário. Em seu pensamento, o corpo não é apenas objeto de metáforas ele fala, demanda, impõe.

No diálogo com a neuropsicanálise, que busca correlações cerebrais de estados mentais (como em autores como Mark Solms, Panksepp, Joseph LeDoux), o legado de Marty oferece cautela e profundidade. Ele relembra que não basta mapear circuitos neuronais se o sujeito não elabora simbolicamente seus afetos. A noção de mentalização presente em Marty já antecipa aspectos centrais da neuropsicanálise contemporânea, sobretudo no que toca à construção de representações internas e regulação afetiva.

Filosoficamente pode haver um paralelo entre Marty e pensadores existenciais ou fenomenológicos, como Merleau-Ponty, que insistem na “carne vivida”. Marty, como eles, recorta o sujeito encarnado, que sofre na ambivalência entre corpo e sentido. Sua crítica ao pensamento operacional aproxima­se de críticas filosóficas da razão tecnicista: quando pensamos apenas em termos de fato e utilidade, descartamos o simbolismo e o sujeito real.

Dentro da psicanálise contemporânea, Marty diverge de correntes que privilegiam o simbólico puro tais correntes tendem a minimizar ou ignorar o sofrimento somático. Ele dialoga, com tensões, com Lacan, que concebe a linguagem como o Real estruturante, mas para Marty esse Real pode se manifestar como dor corporal que exige interpretação simbólica.

Exemplos para clínica e provocação conceitual

Suponha um paciente que sofre de fibromialgia sem causa orgânica clara. A clínica convencional esgota-se em excluir doenças médicas. Marty sugeriria que esse sofrimento reside numa falha de elaboração psíquica: a emoção não pode circular, o corpo “explode”. A relação de objeto alérgica talvez esteja ativada nesse sujeito: ele absorve relações primitivamente, sem função de mediação, e o corpo compõe essa saturação emocional.

Outro exemplo: um indivíduo que relata sua vida como sucessão de fatos secos, sem afetos, sem fantasia, sem sonho. Ele vive em modo operatório. Essa ausência simbólica é um sintoma, já Marty diria que ele bloqueia o circuito afetivo, vive como autômato. A clínica pode começar por restaurar contato com a fantasia, reativar simbolização, mobilizar a função materna do terapeuta para estabilizar escolhas subjetivas.

Convido você, leitor, a se perguntar: quantas doenças crônicas no mundo moderno são manifestações de um buraco simbólico? Quantas vidas escorrem no funcionalismo, no excesso de trabalho, no silêncio afetivo e se expressam no corpo? Se uma neuroimagem revela disfunção, Marty nos recorda que interpretar é necessário, curar não basta mapear.

Por que Pierre Marty importa para ciência e prática clínica

O trabalho de Marty oferece bases para uma psicanálise incorporada, capaz de dialogar com medicina, psicologia e ciências biológicas. Sua clínica responsabiliza o sintoma corporal como parte do discurso humano. Institutos Marty florescem no mundo, e sua obra inspira terapeutas que atendem casos psicossomáticos com recursos simbólicos rigorosos.

Para campos como perícia criminal, ciências forenses e investigação psicológica, a perspectiva Marty alerta que comportamentos, lesões ou sintomas muitos vezes englobam dimensões inconscientes e corporais. Um perito cego à psicossomática pode ignorar a engrenagem subjetiva que fez emergir a lesão.

Marty é provocador porque nos obriga a repensar a clínica: não segregue corpo vs psique. Ele exige pensar no sujeito integral, reintroduz a dor e o sintoma na cena simbólica. Sua obra é convite contínuo ao espanto teórico clínico.

Três livros recomendados (encontráveis na Amazon ou em livrarias especializadas)

  1. La Psychosomatique de l’adulte de Pierre Marty (Coleção Que sais-je ?)

  2. L’Ordre psychosomatique de Pierre Marty

  3. L’Investigation psychosomatique (com Michel de M’Uzan e Christian David)

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