O Perigo Silencioso: O Acúmulo do Não-Encarado e a Paralisia da Alma
O Perigo Silencioso: O Acúmulo do Não-Encarado e a Paralisia da Alma
A Raiz do Sufocamento: O Esforço Exaustivo de Evitar o Conflito Interno
Existe uma verdade incômoda na máxima: "Na vida, o problema muitas vezes não é o que nos sufoca, ou a poeira que vemos, mas sim o acúmulo daquilo que decidimos não encarar." Ela nos confronta com a ideia de que o maior peso que carregamos não vem do mundo exterior, mas da bagagem psíquica que, por covardia ou conveniência, nos recusamos a abrir. O sofrimento crônico, a ansiedade difusa, a sensação de estagnação: tudo isso pode ser o resultado direto do esforço monumental que o psiquismo emprega para manter na sombra aquilo que deveria ser trazido à luz.
Este artigo é um convite direto à desestabilização. Ele busca, de forma clara e objetiva, conectar as disciplinas da Psicanálise, Neuropsicanálise e Filosofia para demonstrar que o problema da não-ação, do acúmulo de conflitos não resolvidos, é a verdadeira força corrosiva da saúde mental. O objetivo é atrair o olhar do leitor leigo, do acadêmico de psicologia, do psicanalista e dos profissionais de investigação forense, que frequentemente lidam com as consequências devastadoras do que foi silenciado e reprimido.
A Dívida Impagável do Recalque (Psicanálise)
Na Psicanálise, o acúmulo do não-encarado tem um nome central: recalque (Verdrängung). Sigmund Freud, o fundador da disciplina, ensinou que o recalque não é um mero esquecimento. É um processo ativo e contínuo, uma despesa energética. O Eu, para se proteger de representações (ideias, memórias) e desejos que considera intoleráveis ou perigosos, mobiliza uma força para empurrá-los e mantê-los no sistema inconsciente.
O que o aforismo chama de "sufocamento" é a manifestação clínica dessa dívida psíquica impagável. A energia (cathexia) que deveria estar disponível para a vida, para a criação e para o prazer, é sequestrada para o trabalho de vigilância do recalque. O sintoma, seja uma fobia, um ato falho ou uma inibição, não é a "poeira que se vê", mas a forma pela qual o material acumulado e reprimido retorna de maneira distorcida. O paciente está exausto, não por ter lutado, mas por ter lutado para não lutar.
Jacques Lacan, ao formalizar o Inconsciente como discurso, aponta que o acúmulo é o não-dito que estrutura a vida do sujeito. É o que foi evitado de ser simbolizado e, por isso, retorna no Real, fora do domínio da linguagem, como angústia pura. A resistência, na análise, é o reflexo da obstinação do sujeito em preservar o acúmulo, preferindo o sofrimento conhecido à verdade libertadora, mas potencialmente desorganizadora, do seu desejo.
A Sobrecarga Metabólica da Evitação (Neuropsicanálise)
A Neuropsicanálise oferece um olhar objetivo e biológico sobre esse esgotamento. O renomado neuropsicanalista Mark Solms, continuando o projeto freudiano de integração entre mente e cérebro, demonstra que o psiquismo é inseparável das funções cerebrais. O "acúmulo do não-encarado" tem repercussões diretas nos sistemas de regulação afetiva do cérebro.
A evitação constante de conflitos e afetos dolorosos impede o seu processamento e a sua integração cortical. Em termos de neurociência afetiva, popularizada por Jaak Panksepp, os afetos primários, como o medo e a angústia, permanecem ativados de forma crônica no cérebro subcortical. O esforço para não encarar essa ativação constante gera o que a medicina do estresse chama de carga alostática.
A alostase é a capacidade do corpo de se adaptar ao estresse. A carga alostática, por sua vez, é o desgaste cumulativo que resulta da hiperativação ou da ineficácia dos sistemas mediadores do estresse (como o eixo HPA, que libera cortisol). Em outras palavras, o sufocamento é o cérebro operando em sobrecarga metabólica. O cérebro gasta energia excessiva para suprimir a memória traumática ou o desejo conflituoso. O problema não é o evento (a poeira), mas o custo biológico sustentado da negação e da repressão (o acúmulo). O neuropsicanalista vê no sintoma a manifestação desse esforço neural infrutífero.
A Fuga Ética da Responsabilidade (Filosofia)
A Filosofia impõe a dimensão ética e existencial ao problema do acúmulo. O autoconhecimento socrático é o antídoto mais antigo e eficaz contra a não-ação. Quem decide "não encarar" escolhe, na verdade, a inconsciência, a negação da própria verdade.
Friedrich Nietzsche, com sua filosofia radical, atacou duramente essa fuga. Para ele, o acúmulo do não-encarado, o ressentimento e a negação dos aspectos duros da vida são marcas do "espírito de rebanho". A moralidade que prega a evitação do conflito é uma força castradora. O sufocamento, na perspectiva nietzschiana, é a incapacidade de afirmar a totalidade da própria existência, incluindo suas contradições e dores. O indivíduo superior (Übermensch) é aquele que assume o Eterno Retorno, aceitando e afirmando cada momento da vida, sem deixar resíduos, sem acúmulo. A recusa em encarar é uma fuga da Vontade de Potência.
No existencialismo, Jean-Paul Sartre descreveu a má-fé (mauvaise foi): o autoengano no qual o ser humano se esconde da sua liberdade radical. O indivíduo que não encara seu acúmulo age de má-fé ao se convencer de que é um objeto determinado (vítima da "poeira que se vê"), e não um sujeito livre e responsável por suas escolhas, incluindo a escolha de evitar o conflito. O peso que o sufoca é a angústia da liberdade que ele nega a si mesmo.
O Convite Irrecusável à Limpeza Psíquica
O diagnóstico é claro: o que paralisa e sufoca não é o conflito externo inevitável, mas a teimosa e energeticamente custosa decisão de mantê-lo acumulado e intocado no universo psíquico. Seja sob a ótica da Psicanálise (dívida do recalque), da Neuropsicanálise (sobrecarga alostática) ou da Filosofia (fuga da responsabilidade), a mensagem é singular: a liberdade reside no ato de encarar.
Para o leitor, este é um desafio. Qual é o seu acúmulo silencioso? O que está demandando sua energia vital e te deixando à beira do sufocamento? A análise não é apenas um processo de descoberta, mas um imperativo ético e um caminho de desoneração metabólica. É hora de parar de varrer a poeira para debaixo do tapete. É hora de abrir o porão do inconsciente e começar a faxina. A desordem externa, muitas vezes, é apenas um reflexo pálido da desorganização que você tem permitido acumular internamente. A ação mais difícil é a mais urgente.
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"O Inconsciente de Freud e o Cérebro de Hoje" por Mark Solms e Oliver Turnbull: Essencial para entender como os conceitos de Psicanálise, como o recalque e o afeto, se traduzem em funções cerebrais e o custo neural do não-encarado.
"Além do Princípio do Prazer" por Sigmund Freud: Texto crucial para aprofundar na compulsão à repetição e na pulsão de morte, mostrando como o sujeito pode ficar preso a padrões de evitação e acúmulo, repetindo o sofrimento ao invés de elaborar.
"Ecce Homo: Como alguém se torna o que é" por Friedrich Nietzsche: Uma autobiografia filosófica que é o ápice do imperativo nietzschiano de autoconfronto, de assumir cada aspecto da própria vida e de se tornar aquilo que se é, o oposto do acúmulo.
Referências Bibliográficas
Freud, S. (1914). Recordar, repetir e elaborar (Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise II). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. XII. Rio de Janeiro: Imago.
Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. (Para a concepção do Inconsciente estruturado como linguagem).
Nietzsche, F. (2012). Ecce Homo: Como alguém se torna o que é. São Paulo: Companhia das Letras.
Panksepp, J. (1998). Affective Neuroscience: The Foundations of Human and Animal Emotions. New York: Oxford University Press.
Sartre, J.-P. (2014). O ser e o nada: Ensaio de ontologia fenomenológica. Petrópolis: Vozes. (Para a análise da má-fé).
Solms, M. (2018). The Conscious Id: A Neuropsychoanalytic Theory of Core Consciousness. Neuropsychoanalysis, 20(2), 119–137.

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