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Kierkegaard: O Filósofo da Angústia e da Liberdade

Kierkegaard: O Filósofo da Angústia e da Liberdade
O Pensador que Desnudou a Existência

No português do Brasil, a pronúncia mais comum e aceita do nome do filósofo Søren Kierkegaard é: “Sôren Quírquegaard”

  • Søren: o “ø” dinamarquês soa como o “ô” fechado, então vira “Sô-ren”.

  • Kierkegaard: costuma ser simplificado para “Quírquegaard” (o “d” final geralmente não é pronunciado, porque no dinamarquês original é quase mudo).

Na Dinamarca, a pronúncia é bem diferente, algo como “Sôrren Kiérkegô”, mas no Brasil a adaptação fonética acabou consolidando o Sôren Quírquegaard.

Søren Kierkegaard é um daqueles nomes que atravessam o tempo como um eco incômodo. Nascido em Copenhague, Dinamarca, em 1813, e falecido em 1855, aos 42 anos, ele viveu pouco, mas deixou uma obra que continua a desafiar a modernidade. Falar de Kierkegaard é mergulhar no terreno da angústia, da fé e da subjetividade, em um caminho que o torna precursor do existencialismo e ainda hoje essencial para compreender as crises do ser humano contemporâneo. A filosofia dele não é fria, distante, mas visceral. É quase um grito que chama o homem para olhar a si mesmo sem as máscaras do social.

Origens e Infância: O Peso do Pai e a Herança do Lar

Kierkegaard nasceu em uma família marcada por tensões profundas. Seu pai, Michael Pedersen Kierkegaard, era um homem religioso, austero e severo, que carregava a culpa por pecados de juventude e acreditava que sua família estava condenada a viver sob um destino trágico. A mãe, Ane Sørensdatter Lund, era simples e pouco instruída, mas representava a ternura e o silêncio que equilibravam o ambiente familiar. Søren cresceu como o caçula de sete irmãos, e testemunhou a morte precoce de quase todos, experiência que moldou sua relação com a dor, o sofrimento e a ideia da finitude.

Formação e Trabalho: Entre a Teologia e a Filosofia

Estudou teologia na Universidade de Copenhague, mas logo percebeu que sua missão não era simplesmente ser pastor ou repetir fórmulas religiosas. Sua inquietação o levou a unir fé e filosofia, lançando críticas profundas tanto à Igreja institucionalizada quanto ao racionalismo de sua época. A filosofia de Kierkegaard se constrói como resistência ao pensamento hegeliano, que tentava abarcar a totalidade do real. Para ele, o indivíduo não poderia ser engolido pelo sistema, mas precisava ser resgatado em sua singularidade.

Obras Principais: A Literatura da Angústia

Kierkegaard escreveu de maneira criativa, muitas vezes utilizando pseudônimos para expressar diferentes pontos de vista. Entre suas obras mais marcantes estão Ou Isto ou Aquilo, Temor e Tremor, O Desespero Humano e A Doença para a Morte. Cada livro é um mergulho em dilemas existenciais como a liberdade, a fé, a responsabilidade e a angústia. Ele tratava a filosofia como literatura e a literatura como filosofia, criando textos que convidam o leitor não apenas a refletir, mas a se confrontar com sua própria existência.

Amigos, Amores e Solidão

Kierkegaard viveu em um círculo social relativamente restrito. Sua figura era considerada excêntrica, e ele não buscava popularidade. Um episódio marcante de sua vida foi o noivado com Regine Olsen, que ele desfez abruptamente. Essa ruptura foi determinante em sua obra, pois Regine se tornou uma presença fantasmática em seus escritos, símbolo do amor renunciado e do preço da autenticidade. Sobre amigos, mantinha poucos, e com frequência entrava em embates públicos, especialmente contra a Igreja Luterana dinamarquesa, que ele acusava de trair a verdadeira essência do cristianismo.

Defeitos e Qualidades de Kierkegaard

Kierkegaard não era um santo. Era um homem melancólico, muitas vezes sarcástico, com tendência ao isolamento e a um certo desprezo pelos jogos sociais. Seu temperamento difícil e sua crítica ácida o tornavam alvo de incompreensão e hostilidade. Por outro lado, possuía uma inteligência brilhante, uma escrita vigorosa e uma coragem rara para enfrentar o conformismo de sua época. Sua maior qualidade foi a capacidade de falar da subjetividade humana com uma intensidade quase poética, trazendo à tona os conflitos que cada indivíduo carrega em silêncio.

Kierkegaard e a Sociedade: Um Pensamento que Não Envelhece

Sua importância para a sociedade vai além da filosofia. Ele antecipou o existencialismo de Sartre e Camus, influenciou a psicologia e a psicanálise ao tratar da angústia como categoria fundamental da existência e ajudou a pensar a liberdade não como simples escolha, mas como responsabilidade radical. Em um mundo saturado de discursos prontos, Kierkegaard ainda nos provoca a assumir a solidão de nossas decisões. Sua filosofia é quase uma terapia do espírito, um convite a enfrentar a si mesmo.

Kierkegaard e a Psicanálise: Ecos no Inconsciente

Embora não tenha conhecido Freud, é impossível não aproximar seu pensamento da psicanálise. Quando ele fala da angústia como vertigem da liberdade, encontramos ecos daquilo que a psicanálise descreve como sintoma, conflito e desejo. Kierkegaard antecipa a ideia de que o ser humano não se reduz ao racional, mas é atravessado por forças obscuras e contraditórias. É aqui que filosofia e psicanálise se encontram: ambas revelam que a vida é feita de conflitos que não podem ser apagados, apenas elaborados.

Conclusão Provocativa: O Chamado da Angústia

Pensar Kierkegaard é aceitar o desconforto. Ele nos lembra que viver é arriscar, é atravessar a angústia da liberdade, é renunciar ao conforto das respostas prontas. A sociedade moderna, com sua pressa e superficialidade, ainda tem muito a aprender com o filósofo dinamarquês. O convite que ele deixa é simples e devastador: olhe para dentro, encare sua angústia, descubra quem você realmente é.

Talvez seja esse o ponto final e também o recomeço. A filosofia de Kierkegaard não se encerra em sua morte em 1855, mas continua viva sempre que alguém ousa pensar a si mesmo com radicalidade. O desafio está lançado: você está disposto a se encontrar no silêncio da sua própria existência?

Referências Bibliográficas

  • Kierkegaard, S. Temor e Tremor. São Paulo: Abril Cultural, 1974.

  • Kierkegaard, S. A Doença para a Morte. Petrópolis: Vozes, 2010.

  • Ferreira, R. M. Kierkegaard: Angústia e Liberdade. São Paulo: Paulus, 2008.

  • Lemos, A. Kierkegaard e a Crítica da Modernidade. Lisboa: Edições 70, 2016.

  • Marino, G. Kierkegaard in the Present Age. Princeton: Princeton University Press, 2001.

Livros de Kierkegaard

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