O Inquietante Familiar: Quando a Realidade nos Causa Estranhamento

O Inquietante Familiar: Quando a Realidade nos Causa Estranhamento
O Inquietante Familiar: Quando a Realidade nos Causa Estranhamento

Você já teve a sensação de que algo, ou alguém, perfeitamente familiar de repente pareceu estranho, quase ameaçador? Aquela casa da infância que, ao ser revisitada, transmite uma solidão opressiva. O reflexo no espelho que, por um segundo, parece não ser o seu. Ou até mesmo um robô com feições humanas que, em vez de nos encantar, nos causa um profundo desconforto. Essa sensação, que flutua entre o conhecido e o assustador, tem nome e uma profunda explicação na psicanálise: é o Inquietante Familiar, ou, no termo original de Sigmund Freud, "Das Unheimliche¹".

¹. A pronúncia mais próxima e clara em português é: "ÚN-RÁIM-LICH".

Vamos detalhar os sons para ficar mais fácil:

  1. UN: Pronuncia-se "ÚN", com a ênfase da palavra nesta primeira sílaba, como em "único".

  2. HEIM: Esta é a parte principal.

    • O "H" tem um som aspirado, como o nosso "R" no início de palavras como "rato" ou "roupa".

    • O ditongo "EI" tem o som de "AI", como na palavra "pai".

    • Juntando, fica: "RÁIM".

  3. LICH: O "CH" final em alemão não tem um som idêntico em português. A melhor e mais comum adaptação é o nosso som de "CH" em "chá" ou de "X" em "xícara". Portanto, a sílaba soa como "LICH".

Este não é apenas um conceito teórico distante. É uma experiência humana universal que revela as fissuras em nossa percepção da realidade e abre uma janela direta para os cantos mais ocultos de nosso inconsciente. Neste artigo, vamos mergulhar nesse fenômeno fascinante e, mais adiante, usar essa lente para analisar uma questão inquietante dentro da própria psicanálise contemporânea.

Desvendando o "Das Unheimliche" de Sigmund Freud

Em seu brilhante ensaio de 1919, "O Inquietante" (Das Unheimliche), Freud investiga por que certas coisas nos assustam ou nos causam repulsa. Sua conclusão é surpreendente: o mais assustador não é o totalmente novo ou desconhecido, mas sim aquilo que um dia já foi familiar e que, por algum motivo, foi reprimido, tornado oculto, e agora retorna de forma distorcida.

A genialidade da análise de Freud começa na própria linguagem. A palavra alemã heimlich significa familiar, íntimo, caseiro. No entanto, ela também carrega um segundo significado: secreto, escondido, oculto. Já seu antônimo, unheimlich, significa o infamiliar, o estranho. O que Freud percebe é que o unheimlich (o inquietante) não é o oposto do heimlich (o familiar), mas sim uma variedade dele. É quando aquilo que deveria permanecer secreto e escondido (heimlich) vem à tona. É o retorno do reprimido.

Gatilhos do Estranhamento: Dos Autômatos aos Duplos

Para tornar o conceito mais claro, Freud e outros pensadores nos deram exemplos práticos de gatilhos que evocam essa sensação. Eles continuam perfeitamente atuais:

  • Autômatos e Bonecos: A dúvida sobre se um ser é vivo ou inanimado. Pense em bonecos de cera, ou nos modernos robôs hiper-realistas. O conceito de "vale da estranheza" (uncanny valley) na robótica é uma herança direta dessa ideia: quanto mais um robô se parece com um humano sem sê-lo perfeitamente, mais inquietante ele se torna.

  • O Duplo (Doppelgänger): A ideia de ter um sósia, um duplo que vive nossa vida, é um tema clássico do horror e da literatura. O duplo nos confronta com a fragilidade da nossa identidade e evoca medos narcísicos primitivos e a ideia da morte.

  • A Repetição Involuntária: Quando um número, nome ou evento se repete em sequência por acaso. Essa coincidência nos dá a sensação de que uma força oculta e predestinada está em ação, quebrando nossa noção de controle e aleatoriedade.

  • O Retorno do Animismo: A crença de que objetos inanimados possuem vida ou que pensamentos podem se materializar. É o retorno de uma fase infantil do desenvolvimento ou de crenças primitivas que a racionalidade adulta reprimiu.

Todos esses exemplos compartilham um núcleo comum: eles embaralham as fronteiras que nos dão segurança, como a fronteira entre a vida e a morte, entre o eu e o outro, entre a realidade e a fantasia.

O Inquietante na Formação do Psicanalista: O Risco do Duplo

Agora, vamos usar essa poderosa lente para observar um fenômeno dentro do nosso próprio campo. A psicanálise, com sua estrutura complexa e sua ênfase na longa e árdua jornada da análise pessoal, é algo que deveria ser heimlich, ou seja, familiar e íntimo para seus praticantes. No entanto, a crescente proliferação de cursos de formação rápidos, superficiais e não regulamentados tem gerado uma figura inquietante: o "duplo" do psicanalista.

Essa figura se apresenta com o título familiar, utiliza o jargão psicanalítico e ocupa o espaço que deveria ser do analista. Contudo, algo nela nos causa estranhamento. Falta-lhe a profundidade, a vivência do próprio divã, a ética sólida e o manejo rigoroso que só uma formação séria e uma longa análise pessoal podem proporcionar. Esse "duplo" é inquietante porque ele é a personificação do que a psicanálise não é, embora se pareça muito com ela na superfície. Ele representa o retorno de algo que a comunidade psicanalítica séria tenta reprimir: o risco da banalização e da prática irresponsável.

A existência desse "analista-autômato", que repete teorias sem a alma da experiência, gera desconfiança e perturba o público. Ele transforma o espaço seguro da análise em um lugar unheimlich, onde o que deveria ser cura pode se tornar trauma. A falta de regulamentação da profissão no Brasil permite que esses duplos se multipliquem, assombrando a reputação daqueles que dedicam suas vidas a uma formação ética e profunda.

Um Convite à Reflexão: O Que nos Causa Estranhamento?

O conceito de "Inquietante Familiar" é muito mais que uma curiosidade intelectual. Ele é um convite para prestarmos atenção aos nossos próprios sentimentos de estranhamento no dia a dia. O que em sua vida parece familiar, mas causa um sutil desconforto? Um relacionamento, um padrão de comportamento, uma escolha de carreira?

Talvez essa sensação inquietante não seja um erro na sua percepção, mas sim um sinal preciso do seu inconsciente. Um sinal de que algo que foi reprimido, esquecido ou negado está tentando retornar à consciência para ser, finalmente, olhado de frente. Escutar o que o "inquietante" tem a nos dizer é um ato de coragem e um passo fundamental na jornada em direção ao autoconhecimento. Afinal, às vezes, é no estranhamento que encontramos o caminho de volta para casa, para dentro de nós mesmos.

Referências Bibliográficas

  • FREUD, Sigmund. O Inquietante (Das Unheimliche). Em: Obras Completas, Volume 14: História de uma neurose infantil ("O Homem dos Lobos"), Além do princípio do prazer e outros textos. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

  • MORI, Masahiro. The Uncanny Valley. Energy, 7(4), pp. 33-35, 1970.

  • VIDAL, Paulo. O Estranho, o Objeto e a Angústia. Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, v. 20, n. 2, p. 89-103, 2008.

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