Hiperlordose, dores lombares e somatização: um convite ao pensar
A dor na lombar, as tensões persistentes nas costas e a hiperlordose não são meramente falhas posturais. Elas podem ser sinais simbólicos de conflitos psíquicos não elaborados. Se aceitarmos a hipótese de que o corpo fala o que a mente ainda não pôde dizer, então uma curva excessiva da coluna pode ser a metáfora encarnada de um sujeito que sobrecarrega seu eixo tentando sustentar cargas invisíveis. Em que ponto a psicanálise, a neuropsicanálise e a filosofia nos permitem atravessar essa metáfora e declinar interpretações úteis para a clínica e para a autoconsciência?
1. A coluna lombar como símbolo corporal
A lombar sustém o tronco, é pivô do movimento e guarda a dobradiça entre sustentação e flexibilidade. A psicossomática clássica assinala que cada segmento da coluna carrega uma representação emocional: a região lombar faz referência à capacidade de jogo de cintura, apoio interno e resistência às exigências da vida (grupounieduk.com.br).
Quando essa estrutura se curva em hiperlordose, o corpo responde a um excesso de tensão. O sujeito se projeta para sustentar um fardo psíquico que já não cabe no simbólico. Em vez de nomear, ponderar e integrar, ele curva-se sob o peso da demanda, e o corpo arqueia.
A dor lombar, dorsal ou cervical surge como mensageira do conflito, uma linguagem de superfície que fala o que permanece sem palavra. A psicanálise nos lembra que muitas angústias não conseguem encontrar uma moldura simbólica, e ali onde não se pode pensar, o corpo toma a palavra.
2. Perspectiva psicanalítica: somatização e o irrepresentável
A somatização, no campo psicanalítico, opera quando o psiquismo abdica da via simbólica e transfere para o corpo aquilo que não pode inscrever em linguagem. As doenças psicossomáticas são descargas de angústias que não podem ser pensadas (cefas.com.br).
Na psicanálise lacaniana, distingue-se o sintoma clássico, onde há um ponto de recalcamento e simbolização possível, da patologia psicossomática, em que a falha de simbolização é mais radical (isepol.com).
Autores como Pierre Marty exploraram essa lacuna: no sintoma psicossomático, não há conversão simbólica elaborada, mas um esvaziamento funcional dos recursos de simbolização (pepsic.bvsalud.org). Em outras palavras, não se trata de um corpo decodificado como mensagem clara, mas de um corpo que faz seu próprio pensamento (revistas.usp.br).
O trauma e o irrepresentável também nos advertem: vivências muito precoces ou intensas podem romper a aquisição simbólica, aprisionando-se no corpo como dor crônica (revistas.usp.br).
No caso da hiperlordose, poderíamos pensar num sujeito que recusa ceder, que permanece rígido frente aos impactos emocionais, que se projeta para sustentar sua identidade ferida. A coluna curva-se para segurar aquilo que não foi suportado simbolicamente.
3. Vista pela neuropsicanálise: dor, rede neural e atenção
A neuropsicanálise, movimento que busca articular a psicanálise com as descobertas da neurociência, pode iluminar esse fenômeno corporal e psíquico. Ela revisita conceitos freudianos sob a luz neurológica e revela como o sistema nervoso participa das manifestações somáticas (pmc.ncbi.nlm.nih.gov).
Estudos sobre dor crônica mostram que o cérebro em repouso altera suas conexões funcionais na presença da dor (arxiv.org). A dor lombar persistente modifica o padrão de atividades entre regiões cerebrais, exigindo que o “eu neural” se reorganize.
Mais ainda, o fenômeno da dor nociplástica¹, moldada por aprendizagem neural e processos não estruturais, sugere que o sistema nervoso pode aprender a dor como padrão habitual, reforçando estados de alerta e proteção (arxiv.org).
¹. Dor nociplástica, é uma dor que surge da alteração do processamento da dor no sistema nervoso central, não por dano tecidual direto, e não é causada por doença ou lesão no sistema somatossensorial.
Na confluência entre o neural e o psíquico, afeto e atenção ganham protagonismo. A atenção sustentada ou sua falha participa da neuroplasticidade: exercitar a consciência corporal reorganiza as redes neurais. A neuropsicanálise clínica propõe assim que o “fazer pensar” no processo analítico reverbere no sistema nervoso em nível estrutural (frontiersin.org).
Logo, a dor lombar não é apenas sensação periférica. É trama cortical, emoção codificada, memória corporal e malha simbólica faltante.
4. Filosofia do corpo: Dasein, fenomenologia e existencialismo
Os filósofos existenciais percebem o corpo como lugar de presença e sentido. A fenomenologia de Merleau-Ponty desvela que o corpo não é objeto entre objetos, mas sujeito sensível do mundo. O ser-no-mundo se encarna, e esse corpo curvado informa uma existência em tensão.
Medard Boss, atravessando Heidegger e a medicina existencial, propôs a Daseinsanalyse, uma abordagem que reconhece as doenças como crises existenciais inscritas no existir corporal (pt.wikipedia.org).
Se a coluna se curva, esse curvar-se é também uma aposta existencial. O sujeito recusa a abertura simbólica, recusa o espaço da vulnerabilidade e escolhe a rigidez como defesa. A filosofia nos lembra que somos corpos no mundo, e que o gesto postural é gesto de ser. Cada curvatura é um estilo de existir.
5. Exemplos clínicos e hipóteses de leitura
Imagine um executivo que vive imerso numa exigência interna intolerável: produtividade, competência, imagem. Ele suporta em silêncio e não externaliza frustração. Aos 45 anos, surge uma lombalgia crônica com hiperlordose. No tratamento, revela que nunca podia recusar tarefas do pai ou da mãe. O corpo arqueia para sustentar o invisível, como um penhor emocional.
Outra paciente que sempre cuidou dos outros, mãe, cônjuge, colegas, e nunca reclamou para si. Chega com dor nas costas. Sua história mostra que ela internalizou um mandamento de benevolência absoluta. A divisão entre repreensão e cuidado internalizado curva a coluna lombar como carregamento simbólico.
Em ambas as hipóteses, o corpo e a coluna são palco de um conflito não nomeado. A dor lombar convoca: “faça-se visível”. E a hiperlordose é a escolha somática de sustentar o peso da exigência interna.
6. Implicações clínicas e sugestões de intervenção
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Escuta corporal: acolher a dor como interlocutora, permitindo que o paciente descreva sensações, imagens e emoções envolvidas.
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Associação simbólica: favorecer a ligação entre dor, narrativas de vida, histórico emocional e escolhas inconscientes.
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Prática psicofísica: técnicas de atenção corporal, respiração e consciência postural para restaurar a conexão simbólica entre corpo e mente.
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Neuroeducação da dor: trabalhar a recontextualização neural e o descondicionamento do alerta-proteção.
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Tempo clínico estendido: reconhecer que dores crônicas têm história e exigem paciência analítica e leitura simbólica do sintoma.
7. Livros recomendados para aprofundamento
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The Neurobiological Underpinnings of Psychoanalytic Theory – Mark Solms
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Psychoanalysis and Psychosomatics: A New Synthesis – G. J. Taylor
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The Body Keeps the Score: Brain, Mind, and Body in the Healing of Trauma – Bessel van der Kolk
Este texto provoca: quantas dores lombares e quantas hiperlordoses são sinais de um sujeito que não encontrou palavra para sofrer? Quantas colunas arqueadas resistem ao silêncio simbólico? Ao colocar psicanálise, neurociência e filosofia em diálogo, viso qualificar o sofrimento corporal como manancial de sentido e convidar você, leitor, a ler seu corpo como um texto ativo.
Referências bibliográficas
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Johnson, B. Using Neuroscience as the Basic Science of Psychoanalysis. pmc.ncbi.nlm.nih.gov
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Solms, M. The Neurobiological Underpinnings of Psychoanalytic Theory. pmc.ncbi.nlm.nih.gov
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Flores Mosri, D. Clinical Applications of Neuropsychoanalysis. frontiersin.org
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Galdi, M. B. Modelos Teóricos em Psicossomática Psicanalítica. pepsic.bvsalud.org
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Dal-Cól, D. M. L. Fenômenos psicossomáticos: uma questão para a psicanálise. isepol.com
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Lemos, S. C. A., Chatelard, D. S., Tarouquella, K. C. Psicossomática e Trauma: o sujeito frente ao irrepresentável. revistas.usp.br
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Yasky, J. Evolution of psychoanalytic approaches to somatic disorders. ovid.com
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Rádio, H. On the Axis of Psychosomatic Totality. journal-psychoanalysis.eu
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Boss, Medard. Seminários de Zollikon / Existential Foundations of Medicine and Psychology. pt.wikipedia.org

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