Durkheim, Psicanálise e Clínica: pensar o suicídio além do sujeito isolado

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Durkheim, Psicanálise e Clínica: pensar o suicídio além do sujeito isolado

Quando trazemos Durkheim para a clínica psicanalítica, estamos dizendo que o sujeito não é ilha. Seu inconsciente guarda fantasmas pessoais, sim, mas também abismos sociais; suas angústias ecoam rupturas coletivas, desregulação normativa, enfraquecimento de laços. A clínica se enriquece se admite que o sintoma suicida pode ter raízes que se estendem além do steering interno.

Caso clínico ilustrativo 1: o isolamento como fermento de egoísmo

Descrição do caso
João, 35 anos, terapeuta ocupacional, vive sozinho numa metrópole. Fez terapia por depressão. Declara sentir-se “invisível”, sem pertencimento. É divorciado, mantém contato esporádico com família. Nas redes, interage pouco; seu círculo social real é escasso.

Análise à luz de Durkheim + psicanálise

  • Há aqui um perfil de suicídio egoísta: baixa integração social, sentimento de desamparo, perda de sentido de pertencimento.

  • Do ponto de vista psicanalítico, emergem fantasmas de abandono, de ser “não visto”, repercussões possivelmente de carências primárias, de vínculos precários, de falas não ouvidas.

  • A associação trabalho‐sozinho, vida privada descontínua cria um vazio social que amplifica os fantasmas pessoais.

Implicações clínicas

  • Intervenção em nivel local: estimular reconexões comunitárias, grupos de pares, práticas de afetos (não só terapêuticas), espaços de solidariedade.

  • Na análise: explorar as fantasias de invisibilidade, as imagens internas de abandono, o ideal do objeto perdido.

  • Evitar olhar exclusivo para sintomas ou farmacologia: tratar simultaneamente a ferida subjetiva e o contexto social que amorfa o eu.

Caso clínico ilustrativo 2: o altruísmo suicida dissimulado

Descrição do caso
Maria, 50 anos, assistente social, católica devota, vive pela causa dos outros. Toma para si dores alheias. Quando doença atinge um irmão, ela se isola, cuida até a exaustão. Sente que é seu dever. Em crise de saúde, expressa desejo de “alívio” para seu sofrimento físico ‒ embora não haja doença terminal.

Análise à luz de Durkheim + psicanálise

  • Suicídio altruísta: excesso de integração, de dever social, de identificação com o coletivo a ponto de silenciar suas próprias queixas.

  • No inconsciente: pode haver identificação com figuras parentais sacrificantes, ideal do self exigente, decomposição entre o que Maria quer e o que supõe que deve fazer.

  • Esse “dever” social pode funcionar como obrigação moral internalizada, geradora de culpa, violência autoimposta.

Implicações clínicas

  • Trabalhar o limite entre responsabilidade e autoanulação; fazer Maria perceber que cuidar não exige morte de si mesma.

  • Modalidades de protesto interno: exigir espaço para desejo, frustração, para corpo que adoece não só por causa externa mas por desgaste interno.

  • Uso de metáforas: “ser curvado pelo peso da devoção” para mostrar que há um ponto em que a alma dobra, racha.

Caso clínico ilustrativo 3: crise, anomia e ruído normativo

Descrição do caso
Lucas, 28 anos, profissional liberal, foi próspero há dois anos. Crise econômica cancela projetos; pandemia destrói planos; família lamenta que ele “não segura as pontas”. Lucas sente que as regras mudaram, que o chão que sustinha suas certezas normativas - sucesso, estabilidade, identidade profissional - se desfez. Começa a falar de “não ver sentido”, de sentir-se traído pela vida.

Análise à luz de Durkheim + psicanálise

  • Esse é suicídio anômico: desregulação, ruptura súbita das normas, expectativas frustradas; a estrutura social não regula mais de forma estável.

  • No nível subjetivo: tristeza, raiva, desejo de vingança contra certezas quebradas, fantasmas de falência ou impotência; “o ideal do ego” que não aguentou a oscilação entre promessa e desastre.

  • Possíveis pulsões de desordem interna emergem quando o sujeito não consegue simbolizar a crise como experiência vivida, mas como desmoronamento inexorável.

Implicações clínicas

  • Explorar esse “new normal” angustiante, permitir que Lucas fale da desorientação, do “antes era outra coisa”.

  • Gerar narrativas de sentido que acolham a crise, em vez de impô-las: a crise como oportunidade de reconstrução, de revaloração dos valores internos.

  • No setting: atenção a transferência de ruído normativo - o analista não deve ser porta-voz de ideais sociais “vitoriosos”, mas provocador de escutas diferentes.

Supervisão clínica: metáforas e pontos de atenção

  • Metáfora do tecido social: pensar o sujeito como trama feita por fios sociais, afetivos, normativos. Quando muitos fios arrebentam, o buraco aparece como suicídio ou ideação suicida.

  • Metáfora do espelho coletivo: quais imagens o paciente vê de si quando se olha no espelho que a sociedade oferece? Imagens de invisibilidade, de expectativa fracassada, de obrigação insuportável?

Pontos de atenção para psicanalistas

  • Nunca reduzir ao psicopatológico sem verificar as fissuras sociais que contextos recentes (economia, pandemia, desemprego, crise moral/política) abriram para o sujeito.

  • O simbolismo do laço social: família, religião, trabalho, comunidade. Quais estão vivos, quais quebrados?

  • Resistência, transferência, pulsão de morte: essas categorias psicanalíticas dialogam com Durkheim se admitirmos que pulsões não brotam no vácuo, mas em campo social saturado de normas, expectativas, promessas falhas.

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