Dr. Caligari Psicanalista

O Gabinete do Dr. Caligari
Reflexões sobre o Dr. Caligari psicanalista

Ao pensar no nome Dr. Caligari, imediatamente sou remetido ao clássico expressionista do cinema alemão de 1920, O Gabinete do Dr. Caligari. A figura que emergiu dessa obra ambígua, enigmática, entre a razão médica e o poder hipnótico acabou se transformando, com o tempo, numa metáfora poderosa para o inconsciente, para a manipulação da mente e para a autoridade do saber sobre o sujeito. No entanto, quando falo do Dr. Caligari psicanalista, não me refiro ao personagem fictício, mas ao modo como esse nome foi incorporado em círculos acadêmicos e críticos como símbolo de um olhar psicanalítico sobre a cultura, a loucura e os jogos de poder entre sujeito e discurso.

Caligari nunca existiu como psicanalista histórico, não nasceu em Viena nem frequentou os seminários de Freud. Mas é impossível negar que sua presença simbólica se tornou fértil para pensar a psicanálise. Sua "biografia", portanto, é mais uma biografia conceitual. Se lhe invento pais, amigos e discípulos, esses são Freud, Jung, Ferenczi e tantos outros que, como ele, habitaram a fronteira entre ciência e ficção. Sua obra principal não é um tratado escrito, mas o impacto cultural que nos permite analisar a psicodinâmica da autoridade, o fascínio pelo poder e o medo da hipnose social.

Na psicanálise, Caligari pode ser lido como aquele que encarna o Outro lacaniano, a instância simbólica que dá ordem, mas que também aprisiona. Na filosofia, ecoa Foucault quando este denuncia a medicalização da loucura e o controle disciplinar dos corpos. Na neurociência, poderia ser comparado às pesquisas atuais sobre o funcionamento das áreas cerebrais ligadas à tomada de decisão e ao livre-arbítrio, mostrando o quanto somos atravessados por forças inconscientes, tanto internas quanto externas.

Refletindo sobre essa construção, percebo que a figura do Dr. Caligari psicanalista serve para problematizar nossos próprios valores. O que nos fascina na autoridade? Por que tendemos a buscar um mestre que nos hipnotize com verdades absolutas, ao mesmo tempo em que desconfiamos dele? Talvez porque, como dizia Freud, “as massas nunca estiveram sedentas pela verdade, mas por ilusões”. Nesse ponto, o Dr. Caligari é mais atual do que nunca: representa o risco de que a psicanálise, a filosofia ou mesmo a ciência se transformem em novas formas de hipnose social.

Se tivesse de escrever sua biografia, eu diria que Caligari nasceu no berço do expressionismo alemão, cresceu alimentado pelas angústias da Primeira Guerra, teve como amigos os pintores e escritores que traduziam o caos em estética, e deixou como obra maior um espelho distorcido no qual nós, psicanalistas, ainda vemos refletida a relação entre poder, inconsciente e desejo. Morreu, simbolicamente, cada vez que alguém acreditou cegamente em um mestre, mas renasce sempre que ousamos desconfiar até mesmo das nossas próprias verdades. E talvez aqui esteja sua contribuição mais aguda: não há psicanálise sem suspeita.

O Dr. Caligari psicanalista, portanto, não é uma figura histórica, mas um arquétipo. Um aviso. Um convite para não cairmos na tentação de nos tornarmos senhores do saber que aprisiona. Como analista, sinto-me provocado por sua sombra, e talvez seja essa sua maior herança: lembrar-me de que até a psicanálise pode virar uma hipnose se não for atravessada pela ética da escuta e da dúvida.

Referências Bibliográficas

  • Freud, S. (1921). Psicologia das Massas e Análise do Eu. Rio de Janeiro: Imago.

  • Lacan, J. (1998). O Seminário, Livro 11: Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

  • Foucault, M. (1972). História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva.

  • Kracauer, S. (1947). De Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema alemão. Princeton University Press.

  • Eisner, L. H. (1969). O Expressionismo no Cinema Alemão. Nova York: A. S. Barnes.

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