Contardo Calligaris
Contardo Calligaris: entre a clínica e a literatura da alma
Quando penso em Contardo Calligaris, não consigo limitá-lo ao rótulo de psicanalista. Ele foi um viajante da linguagem, um intérprete da vida, um cronista das nossas misérias e grandezas. Nascido em Milão, em 2 de junho de 1948, em uma família de médicos, cresceu entre diagnósticos e remédios, mas logo percebeu que a alma não se deixa prender em exames laboratoriais. Escolheu, em vez da bisturi, a palavra. Em vez da prescrição, a escuta.
Ainda jovem partiu para a França, onde mergulhou na filosofia e na psicologia clínica, atravessado pelas ideias de Jacques Lacan, que o marcaram como mestre e provocador. Ali descobriu que a psicanálise não é um dogma, mas um campo de batalhas simbólicas. Essa formação lhe deu o rigor, mas foi sua natureza inquieta e cosmopolita que o empurrou para fora das fronteiras. Veio ao Brasil nos anos 1980, e aqui se reinventou.
No Brasil, Calligaris não foi apenas estrangeiro, foi alguém que escolheu este país como espelho de sua própria alma. Casou-se, teve seu filho, Max, construiu amizades intensas e uma vida cultural ativa. Era visto em cafés, bares, rodas de conversa. Não se trancava no consultório. Levava a psicanálise para a rua, para a literatura, para o jornal. Em suas colunas na Folha de S. Paulo, conseguiu a façanha de falar de inconsciente, desejo e sintoma como quem fala de amor, solidão e encontros banais da vida.
Escreveu romances como O Conto do Amor e A Mulher de Vermelho e Branco, nos quais a trama é sempre atravessada pelo enigma do desejo. Escreveu também livros de ensaio, como Cartas a um Jovem Terapeuta, em que revelou a clínica como uma prática de humanidade, e não como técnica asséptica. Em Hello, Brasil!, ousou olhar para nós com a perspicácia de quem vê de fora, mas com o afeto de quem já é de dentro.
Contardo tinha amigos escritores, jornalistas, artistas, mas sua amizade maior era com o leitor. Havia em sua escrita uma generosidade que tornava a psicanálise menos distante, menos hermética. Ele sabia que o sofrimento humano não se dissolve em conceitos. Como dizia Freud, “o poeta sempre nos precede”. Calligaris sabia disso, e talvez por isso escrevia como um poeta que escutava.
Morreu em 30 de março de 2021, em São Paulo, vencido por um câncer, mas não derrotado. Sua ausência foi sentida como um vazio coletivo, como se perdêssemos alguém que traduzia nossas dúvidas em palavras. Para mim, sua vida ensina que a psicanálise não deve ficar nos livros, mas deve se arriscar no jornal, no palco, na ficção, na conversa de bar.
Hoje, quando volto a suas crônicas, percebo que Contardo não nos deixou fórmulas. Ele nos deixou perguntas. E isso é o que mais me toca: seu legado é o convite para viver de forma mais verdadeira, mais desarmada, mais capaz de rir de si mesmo. Em tempos de discursos duros e certezas rápidas, Calligaris nos lembrava que a dúvida também é forma de sabedoria.
Provoco a mim mesmo quando penso nele: será que nós, psicanalistas, temos coragem de sair do conforto dos conceitos e falar com a vida? Será que conseguimos, como ele, olhar para a cultura sem moralismos e enxergar o humano em sua beleza e contradição? Talvez o maior tributo que podemos prestar a Contardo seja justamente este: continuar interrogando o mundo, sem medo da fragilidade que nos constitui.
Referências bibliográficas
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Calligaris, C. (1991). Hello, Brasil!. São Paulo: Companhia das Letras.
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Calligaris, C. (1996). O Conto do Amor. São Paulo: Companhia das Letras.
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Calligaris, C. (2004). Cartas a um Jovem Terapeuta. Rio de Janeiro: Elsevier.
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Calligaris, C. (2010). A Mulher de Vermelho e Branco. São Paulo: Companhia das Letras.
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Folha de S. Paulo. (2021). “Morre o psicanalista Contardo Calligaris”.
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Schwarcz, L. (2021). “Adeus a Contardo Calligaris”. Revista Piauí.ensaístico?

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