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chistes, Atos Falhos, Sonhos e Sintomas

chistes, Atos Falhos, Sonhos e Sintomas
Há algo de fascinante quando penso nos chistes, nos atos falhos, nos sonhos e nos sintomas. Em todos eles, encontro a mesma lógica: o inconsciente não é um lugar obscuro e distante, mas um palco vivo onde a verdade insiste em aparecer, ainda que disfarçada. Freud dizia que “os chistes são uma liberação de prazer”, e cada vez que rio de algo aparentemente simples, sinto que ali existe uma mensagem mais profunda, quase uma brecha por onde escapa o indizível. O chiste toca no desejo reprimido, mas o faz de maneira leve, rindo de si mesmo. É a linguagem do inconsciente brincando com as bordas da consciência.

Os atos falhos, por sua vez, me inquietam ainda mais. Não são erros banais. Quando digo um nome no lugar de outro ou esqueço uma palavra que parecia óbvia, sei que não se trata de um acaso. Freud insistiu: “o inconsciente fala através do lapso”. Em minha prática clínica, percebo que esses pequenos tropeços revelam muito mais do que discursos elaborados. É como se o inconsciente, silencioso, aproveitasse um descuido para dizer: “eu também existo”.

Os sonhos são talvez a mais poética dessas manifestações. Desde Aristóteles, sabemos que eles intrigam filósofos, e Platão já os via como vislumbres de outra dimensão da alma. Freud os chamou de “via régia para o inconsciente”, e não há como negar que, ao interpretá-los, nos deparamos com símbolos, desejos e restos diurnos que se transformam em narrativas noturnas. Lacan acrescentaria que “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”, e, portanto, sonhar é falar, só que numa gramática desconhecida, cheia de imagens e metáforas.

Os sintomas, por fim, são o peso mais denso dessa mesma lógica. Enquanto o chiste diverte, o ato falho surpreende e o sonho seduz, o sintoma aprisiona. Ele é a dor do inconsciente, uma forma de dizer aquilo que o sujeito não pode enunciar de outra maneira. Freud escreveu que o sintoma é uma “satisfação substitutiva”, e vejo nele um paradoxo: aquilo que adoece também protege, aquilo que limita também sustenta.

A neuropsicanálise, nesse contexto, nos ajuda a enxergar as bases cerebrais desses fenômenos sem reduzir sua riqueza simbólica. Pesquisadores como Mark Solms demonstram que os sonhos estão intimamente ligados a sistemas emocionais básicos do cérebro, mas isso não elimina sua dimensão interpretativa. Pelo contrário, a ciência confirma que o inconsciente pulsa nas sinapses, no córtex, nas emoções primárias. O que Freud intuiu, a neurociência hoje começa a confirmar: o inconsciente é uma realidade concreta, ainda que se expresse de formas sutis.

E aqui deixo minha provocação final: se chistes, atos falhos, sonhos e sintomas são formas de expressão de uma verdade que não conseguimos calar, por que insistimos em tratá-los como meros acidentes ou distúrbios? Não seriam eles convites à escuta? Talvez, rir de um chiste, tropeçar num ato falho, sonhar um enigma ou sofrer um sintoma seja o preço que pagamos por não sermos donos de nós mesmos. O inconsciente, afinal, não pede licença: ele se impõe, nos revela e, muitas vezes, nos governa.

Referências bibliográficas

  • Freud, S. A Interpretação dos Sonhos. Obras Completas. Companhia das Letras, 2019.

  • Freud, S. Psicopatologia da Vida Cotidiana. Obras Completas. Companhia das Letras, 2016.

  • Freud, S. O Chiste e sua Relação com o Inconsciente. Obras Completas. Companhia das Letras, 2017.

  • Lacan, J. Escritos. Zahar, 1998.

  • Solms, M. The Hidden Spring: A Journey to the Source of Consciousness. W.W. Norton & Company, 2021.

  • Platão. A República. Vários tradutores.

  • Aristóteles. Da Alma.

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