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Todo aquele que se destaca será atacado: o que a psicanálise fala sobre?

Todo aquele que se destaca será atacado: o que a psicanálise fala sobre?
Prefiro ser um eterno Mestre Aprendiz do que um Aprendiz Mestre!

Todo aquele que se destaca será atacado: o que a psicanálise fala sobre?

Introdução: o preço de brilhar

Vivemos em uma sociedade onde destacar-se é ao mesmo tempo uma bênção e uma condenação. Aquele que ousa ultrapassar a mediocridade, que se expõe, cria, lidera ou simplesmente não se conforma, inevitavelmente desperta tanto admiração quanto hostilidade. É como se a luz do indivíduo que se destaca provocasse sombras nos outros, revelando inseguranças, ressentimentos e desejos recalcados. Mas por que o sucesso, a originalidade ou a diferença geram tanto ataque? A psicanálise oferece respostas profundas para esse fenômeno humano, que não é novo, mas se repete em diferentes épocas, culturas e contextos sociais.

Neste artigo, vamos mergulhar no olhar psicanalítico sobre a inveja, o narcisismo ferido, o recalque coletivo e o funcionamento inconsciente que leva as pessoas a atacar justamente aquele que traz algo de novo ou que ocupa um lugar de brilho. Entender isso é mais do que teoria; é compreender a natureza do laço social, da rivalidade e da própria condição humana.

O inconsciente e a ferida narcísica

Sigmund Freud já dizia que o ser humano não suporta perder sua centralidade. A cada vez que algo ou alguém ameaça o lugar de supremacia do ego, ocorre uma ferida narcísica. O indivíduo que se destaca, inevitavelmente, encarna essa ameaça. Sua presença lembra os outros daquilo que eles não têm, não conquistaram ou não ousaram ser. É como se o sucesso alheio gritasse silenciosamente as frustrações internas.

Aqui nasce o ataque. A agressividade projetada contra o outro é, na verdade, uma defesa contra a dor de olhar para dentro. Freud chamou esse processo de mecanismo de projeção: aquilo que não suportamos em nós mesmos é colocado no outro, e este outro torna-se alvo de ódio ou hostilidade.

Inveja: a raiz do ataque

Melanie Klein, uma das grandes vozes da psicanálise, trabalhou profundamente a questão da inveja. Para ela, a inveja é um dos sentimentos mais primitivos do ser humano. O bebê, diante do seio materno, pode sentir raiva não apenas porque precisa, mas porque o seio tem algo que ele não possui. Esse movimento inconsciente permanece na vida adulta: o outro que brilha, que cria, que conquista, passa a ser visto como alguém que carrega algo de inatingível.

O ataque, nesse caso, é uma tentativa inconsciente de destruir ou desvalorizar aquilo que provoca dor. O invejoso não suporta a existência do objeto amado e odiado ao mesmo tempo. Ele precisa atacá-lo para reduzir a ferida interna. É por isso que vemos tantas críticas destrutivas contra artistas, intelectuais, líderes ou qualquer pessoa que “apareça” além da média.

O recalque social: o grupo contra o indivíduo

René Girard, filósofo que dialoga com a psicanálise, fala do mecanismo do bode expiatório. Quando um indivíduo se destaca, ele carrega a marca da diferença. O grupo, que teme a desordem ou a ruptura de sua estabilidade, se volta contra esse indivíduo. Ele é atacado não apenas por quem sente inveja, mas pelo coletivo que precisa de uma vítima para canalizar tensões internas.

No ambiente digital, esse mecanismo se torna ainda mais evidente. Redes sociais funcionam como arenas públicas de julgamento. O que antes era uma conversa privada agora é uma explosão pública. Aquele que ousa falar algo fora do esperado ou que conquista visibilidade se torna facilmente o alvo de ataques virtuais. O recalque não é apenas individual, mas coletivo, e ganha força quando se une ao desejo de pertencimento: criticar junto é sentir-se incluído no grupo.

A sombra da autenticidade

Outro ponto central é o que Carl Gustav Jung chamou de sombra. Cada pessoa carrega em si aspectos rejeitados, reprimidos ou não reconhecidos. Quando alguém se destaca, mostra coragem, autenticidade ou liberdade, ele toca justamente na sombra dos outros. Isso gera incômodo. Não é raro ouvirmos frases como “ele pensa que é melhor do que os outros” ou “isso é só sorte”. Essas falas, muitas vezes, escondem o medo de encarar a própria covardia ou estagnação.

A psicanálise revela que não atacamos o outro por ele ser simplesmente o que é, mas porque ele desperta em nós algo que não queremos enfrentar. O destaque alheio escancara a nossa sombra, e o ataque surge como defesa.

O brilho como espelho do desejo

Lacan acrescenta outra camada. Para ele, o desejo humano é sempre desejo do desejo do outro. O sujeito que se destaca encarna algo que os outros desejam, mesmo que não admitam. O ataque, paradoxalmente, é também um reconhecimento. Quem ataca está, em certo nível, confessando que aquilo lhe afeta profundamente. O brilho do outro funciona como espelho das faltas e desejos inconscientes.

Portanto, ser atacado por se destacar não é sinal apenas de rejeição, mas também de uma estranha forma de validação: o outro reconheceu que ali há algo poderoso, tanto que não consegue ignorar.

Conclusão: o convite à reflexão

Ser atacado ao se destacar não é uma anomalia, mas quase uma lei psíquica e social. A psicanálise nos mostra que inveja, recalque, sombra e feridas narcísicas estão na base desse fenômeno. A grande questão não é apenas por que somos atacados, mas como lidamos com isso. Resistir, seguir em frente e não se deixar paralisar são os verdadeiros desafios.

Afinal, se todo aquele que se destaca será atacado, a escolha está em decidir se queremos viver na mediocridade segura ou na ousadia arriscada. A psicanálise nos convida a encarar o ódio alheio como parte da condição humana, e não como sinal de que devemos nos apagar.

Deixo aqui uma provocação: o que dói mais, ser atacado por brilhar ou viver sem jamais ousar acender a própria luz?

Referências bibliográficas

  • Freud, S. (1920). Além do princípio do prazer. Obras completas.

  • Freud, S. (1914). Sobre o narcisismo: uma introdução. Obras completas.

  • Klein, M. (1957). Inveja e gratidão. Imago.

  • Jung, C. G. (1964). O homem e seus símbolos. Nova Fronteira.

  • Lacan, J. (1966). Escritos. Perspectiva.

  • Girard, R. (1982). O bode expiatório. Paulus.

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