Na tradição psicanalítica, a perversão nunca foi pensada como um simples "desvio moral" ou um "comportamento sexual anômalo". Para Freud e Lacan, a perversão é uma estrutura clínica, uma forma singular de o sujeito se posicionar diante da castração, do desejo e da Lei. Porém, ao deslocarmos o olhar para o cenário cultural atual, é possível perceber como o funcionamento perverso que outrora aparecia com mais nitidez nos indivíduos passa a marcar também a lógica social, política e até econômica. A perversão, hoje, está menos nos consultórios e mais nas vitrines, nos algoritmos, nas telas e nos discursos.
Freud, em textos como Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, desmistificou a sexualidade humana ao mostrar que ela não é natural nem normal no sentido médico-moral do termo. O que chamamos de “perversões” voyeurismo, fetichismo, masoquismo, entre outras são, na verdade, formas fundamentais do desejo humano, presentes em todos nós de maneira difusa. Já em O Eu e o Id, Freud avança ao mostrar que o perverso não recalcaria a pulsão como o neurótico, mas a redirecionaria por meio de uma negação ativa da castração.
Lacan retoma esse ponto e o leva adiante. Para ele, a perversão não é uma transgressão gratuita, mas uma posição estruturada em relação ao Outro e à Lei. Enquanto o neurótico sofre por se submeter ao desejo do Outro, e o psicótico exclui o significante da Lei (foraclusão), o perverso encena a Lei como espetáculo, se colocando como objeto de gozo para o Outro, numa posição de manipulação do desejo alheio. O perverso não ignora a Lei: ele a contorna, a dramatiza, a instrumentaliza para extrair gozo.
Essa estrutura nos ajuda a compreender o funcionamento de muitos fenômenos contemporâneos. No mundo atual, atravessado por redes sociais, marketing de influência, consumo veloz e espetacularização de tudo, o discurso perverso se tornou uma engrenagem dominante. Somos o tempo todo convidados a gozar: “siga seu desejo”, “você merece tudo”, “seja você mesmo custe o que custar”. A Lei simbólica, que impõe limites, cede lugar a uma lógica de excesso, de performance, de negação da falta. O imperativo é gozar sempre e não desejar.
Nesse contexto, o objeto a, conceito central de Lacan, assume um lugar de destaque. O objeto a é aquilo que causa o desejo, mas nunca pode ser plenamente obtido. Na perversão, esse objeto se materializa: o fetiche toma o lugar do Outro. No mundo da cultura digital, há uma multiplicação desses objetos a embalados em mercadoria: o corpo perfeito, o celular da moda, a viagem instagramável, a resposta instantânea, o amor sem conflito. Tudo aparece como acessível, disponível, pleno como se a falta, motor do desejo, pudesse ser evitada.
A sociedade de consumo, ao transformar o sujeito em consumidor permanente, desloca o desejo para o gozo imediato. O sintoma, ao invés de ser elaborado, é convertido em mercadoria ou espetáculo. O sofrimento é estetizado. O trauma é monetizado. A dor é exibida. É a lógica perversa da cena: em vez de confrontar a castração, tudo é mascarado, encenado, embalado para venda ou like.
E o que dizer das relações humanas? Muitas dinâmicas afetivas atuais como o ghosting, o gaslighting ou os jogos de sedução baseados no controle reproduzem formas de gozo que podem ser compreendidas à luz da estrutura perversa. Não se trata de chamar de “perverso” todo sujeito que transgride uma norma. Isso seria uma leitura moralizante e empobrecedora. Trata-se, sim, de perceber que certas lógicas culturais estimulam posições subjetivas que evitam o encontro com a alteridade, com a falta, com o limite. O outro, em vez de ser reconhecido como sujeito, é transformado em instrumento de gozo.
Contudo, é importante não demonizar a perversão. A psicanálise não é moralista. Lacan foi enfático: “a perversão é uma solução subjetiva legítima”. Em muitos casos, ela permite ao sujeito encontrar um modo de organizar seu gozo, de sustentar um laço com o Outro, mesmo que às margens da norma. A crítica que aqui se propõe não é à perversão enquanto estrutura, mas à sua generalização como lógica cultural dominante, que apaga o desejo e impede o sujeito de simbolizar sua falta.
Vivemos um tempo em que o real é muitas vezes negado ou editado. Mas o real retorna sob a forma da angústia, do burnout, da insatisfação crônica, da violência nos laços. Escutar isso exige devolver ao desejo seu lugar. E isso a psicanálise pode oferecer: não a promessa de um gozo pleno, mas o convite a habitar a falta, a suportar o desejo, a abrir espaço para o outro não como objeto, mas como sujeito.
Referências bibliográficas
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Freud, Sigmund. Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. Imago, 1905
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Freud, Sigmund. O Eu e o Id. Imago, 1923
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Lacan, Jacques. O Seminário, Livro 17: O Avesso da Psicanálise. Zahar, 1992
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Lacan, Jacques. O Seminário, Livro 7: A Ética da Psicanálise. Zahar, 1988
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Lacan, Jacques. Escritos. Zahar, 1998
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Zizek, Slavoj. Bem-vindo ao Deserto do Real. Boitempo, 2003
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Safatle, Vladimir. O Circuito dos Afetos. Cosac Naify, 2015
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