Esclerose Múltipla na Perspectiva Psicanalítica
Introdução: Quando o corpo fala aquilo que a alma silencia
A esclerose múltipla é uma condição neurológica complexa, marcada pelo ataque do sistema imunológico contra a mielina, que reveste os neurônios e garante a comunicação eficiente no sistema nervoso central. Mas, para além do diagnóstico médico e dos termos técnicos, é fundamental compreender o impacto existencial e subjetivo dessa doença. Na perspectiva psicanalítica, a esclerose múltipla não se reduz a um conjunto de lesões visíveis em exames de ressonância magnética. Ela é também uma narrativa de vida, uma experiência atravessada por afetos, símbolos, medos e reconstruções de identidade. O corpo, quando adoece, muitas vezes se torna palco de uma linguagem inconsciente, manifestando aquilo que não pôde ser dito pelas palavras.
O corpo como território do inconsciente
Freud, já no início de suas pesquisas, apontava que o corpo é mais do que matéria biológica, ele é cenário onde o inconsciente inscreve seus sinais. Quando falamos em esclerose múltipla, falamos de um corpo que se desfaz em suas certezas, que falha em sua coordenação, que se cansa sem explicação aparente. A psicanálise nos convida a não olhar apenas para os sintomas clínicos, mas para o sujeito que sofre, para o significado de um corpo que se desorganiza. O corpo é linguagem, e na esclerose múltipla essa linguagem pode se manifestar em lapsos motores, na perda de autonomia e na angústia de não reconhecer mais a própria força.
A imprevisibilidade da doença e a questão do sujeito
A esclerose múltipla é uma doença marcada pela imprevisibilidade. Surtos aparecem e desaparecem, há momentos de melhora e outros de regressão. Essa instabilidade toca diretamente a estrutura subjetiva do paciente. O sujeito se vê diante da impossibilidade de prever seu futuro imediato, e isso desperta angústia. Na visão psicanalítica, essa instabilidade obriga o paciente a reelaborar sua relação com o tempo, com a espera, com a frustração e com o desejo. O corpo já não obedece à vontade como antes, e essa falta de controle pode ser vivida como uma metáfora da própria condição humana: nunca fomos donos absolutos de nós mesmos.
Esclerose múltipla e identidade: quem sou eu quando meu corpo me abandona
Uma das maiores questões levantadas pela esclerose múltipla é o impacto na identidade. Quem sou eu quando não posso mais correr, quando minha visão falha, quando a fadiga me impede de realizar o que antes era simples? A psicanálise nos ensina que o eu se constrói na relação com o corpo, e quando esse corpo adoece profundamente, há um abalo no sentimento de identidade. O sujeito pode sentir-se estrangeiro dentro de si mesmo. Esse estranhamento é doloroso, mas também pode abrir espaço para novas narrativas de si. O paciente se vê convocado a ressignificar sua vida, a encontrar novos modos de existir que não dependam apenas da performance física.
O olhar da neurociência e da psicanálise
Hoje a neurociência, através de exames como a ressonância magnética funcional, consegue mapear as lesões da esclerose múltipla e compreender sua progressão. Mas a psicanálise nos lembra que nenhuma imagem de cérebro dá conta da totalidade da experiência subjetiva. O afeto, o sofrimento, o sonho e a fantasia não aparecem nas imagens. Há um campo de encontro entre essas duas áreas: a neurociência aponta os mecanismos, a psicanálise interpreta os significados. Essa fusão não é para reduzir o homem ao biológico, mas para reconhecer que somos corpo e inconsciente ao mesmo tempo. É nesse cruzamento que podemos compreender melhor o impacto da esclerose múltipla.
O adoecimento como acontecimento de vida
Na visão psicanalítica, toda doença é também um acontecimento de vida. Não se trata apenas de conviver com sintomas, mas de lidar com a transformação subjetiva que eles provocam. A esclerose múltipla obriga o sujeito a enfrentar limites, a reformular expectativas e a se reconciliar com sua vulnerabilidade. Esse processo, embora doloroso, pode também revelar forças ocultas. A doença convoca o paciente a um trabalho psíquico: elaborar a perda, construir novos sentidos, aceitar o imponderável e, ainda assim, afirmar o desejo de viver.
Conclusão: um convite à reflexão
A esclerose múltipla, vista pela lente da psicanálise, não é apenas um diagnóstico neurológico, mas um convite a pensar a condição humana em sua essência. Ela nos lembra que o corpo não é apenas máquina, é também linguagem, é também memória inconsciente. O sujeito que adoece precisa ser ouvido em sua singularidade, não apenas tratado em sua biologia. A psicanálise não oferece cura para a esclerose múltipla, mas oferece escuta, sentido e espaço simbólico para que o paciente não se reduza a uma estatística médica. Pensar a esclerose múltipla psicanaliticamente é pensar a vida em sua fragilidade e em sua potência, é perceber que o sofrimento, quando simbolizado, pode abrir caminhos inesperados para a criação de si.
Referências Bibliográficas
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Compston, A., & Coles, A. (2008). Multiple sclerosis. The Lancet, 372(9648), 1502-1517.
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Freud, S. (1915). O Inconsciente. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Imago.
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Lacan, J. (1966). Escritos. Rio de Janeiro: Zahar.
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National Multiple Sclerosis Society. Disponível em: https://www.nationalmssociety.org
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Ministério da Saúde, Brasil. Protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas da Esclerose Múltipla.
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Solaro, C., & Trabucco, E. (2020). Psychological aspects of multiple sclerosis: A clinical review. Neurological Sciences, 41, 2737–2744.
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