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Anedonia: quando o prazer desaparece e o desejo se cala

Anedonia: quando o prazer desaparece e o desejo se cala

Anedonia: quando o prazer desaparece e o desejo se cala

A anedonia é definida pela perda da capacidade de sentir prazer um sintoma poderoso que impede a experiência de satisfação em atividades antes agradáveis: relações, trabalho, lazer, comida ou sexo. Frequentemente associada à depressão, ela emerge também em quadros de ansiedade, esquizofrenia, transtornos de personalidade e uso de substâncias (Fãs da Psicanálise).

1. Caráter clínico do sintoma

No campo médico, a anedonia é um indicador central de transtorno depressivo maior, presente em aproximadamente 70 % dos casos (Sanarmed). O DSM‑5 entende que ela cobre tanto a redução da antecipação do prazer (desejar) quanto a experiência consumatória (sentir) (Wikipedia, Sanarmed).

A explicação neurobiológica aponta para uma disfunção no sistema de recompensa do cérebro: envolve disfunções no núcleo accumbens, no estriado ventral, na córtex pré-frontal (orbitofrontal e medial ventromedial), e baixos níveis de dopamina, além de perturbações em outras monoaminas (PubMed).

Do ponto de vista funcional, a anedonia pode se manifestar de forma intensa ou leve, mas costuma gerar isolamento social, desmotivação persistente, apatia emocional e risco aumentado de suicídio (Fãs da Psicanálise).

2. Causas e fatores de risco

Entre os fatores de risco estão traumas, estressores graves, histórico familiar de depressão ou psicose, uso contínuo de certas substâncias e quadros de abstinência, como ocorre com usuários crônicos ou com uso prolongado de antidepressivos (Nav Dasa).

Subtipos clínicos incluem:

  • Anedonia social – falta de prazer em interações;

  • Anedonia física ou sexual – ausência de prazer em estímulos corporais ou alimentares (Sanarmed).

3. Tratamento - médico e psicoterápico

O manejo da anedonia é desafiador, pois o próprio sintoma compromete a adesão ao tratamento. O uso de antidepressivos que atuam na dopamina ou noradrenalina (como bupropiona ou mirtazapina) pode ser indicado nacionalmente, além de abordagens inovadoras como terapia com cetamina, TMS, estimulação vagal ou terapias focadas em afetos positivos (PAT) (Wikipédia).

Terapias como a cognitivo-comportamental ou a analítico-comportamental também são usadas, buscando resgatar a motivação ou reestruturar padrões de pensamento negativos (Nav Dasa).

Intervenções de estilo de vida atividade física, boa alimentação, sono adequado, atividades ao ar livre, conexão social e prática de gratidão também contribuem para reativar circuitos de prazer (Real Simple, Verywell Mind, Health).

4. Perspectiva psicanalítica

Para a psicanálise, a anedonia não é apenas um déficit neuroquímico, mas uma formação subjetiva que aponta para algo mais profundo: um apagamento do desejo ou uma defesa contra o sofrimento.

Freud já situava a anedonia como resultado de conflitos inconscientes e traumas não resolvidos, que conduzem o sujeito a evitar a experiência de prazer como forma de autoproteção (Psicanálise Clínica).

No campo lacaniano, vê-se a anedonia como expressão do princípio de Nirvana, ou seja, um esforço psíquico de eliminar a excitação pulsional, apagando o excesso do desejo (Wikipédia). Esse sujeito busca a anulação até mesmo do gozo: não quer desejar, prefere a planície do nada.

A anedonia pode também revelar um luto simbólico não elaborado, uma perda de objeto que esvazia o campo do desejo, levando à retirada do investimento libidinal no mundo.

5. A clínica psicanalítica

Na escuta psicanalítica, o foco é compreender qual função subjetiva a anedonia assume: proteção contra culpa, imposição familiar ou cultura do dever; recusa em enfrentar encontros com o Outro; ou uma forma silenciosa de protesto contra expectativas.

A análise pode explorar:

  • desde quando o prazer deixou de existir,

  • em que contexto isso se intensificou,

  • quais prazeres estão afetados,

  • que vínculos foram quebrados ou idealizados,

  • que lugar simbólico o sujeito ocupa nessa trama.

O objetivo é reconectar o sujeito com o seu desejo não para promover um prazer recuperado, mas para que algo volte a circular no inconsciente.

6. Reflexão final

A anedonia mostra que o sintoma pode ser também uma recusa de sentir, um gesto de defesa contra o que dói. Mas o que se cala geralmente ainda fala por meio da forma como o sujeito se retira emocionalmente.

Com a escuta ética, sólida e atenta da psicanálise, é possível acolher esse silêncio e permitir que o afeto retorne, mesmo que de modo fragmentado. Afinal, o sujeito não é o sintoma ele pode ser escutado para além dele.

Referências bibliográficas

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