Acesso a serviços — saúde mental em catástrofes e emergências no Brasil e no mundo
Acesso a serviços — saúde mental em catástrofes e emergências no Brasil e no mundo
Introdução
Quando uma enchente invade casas, uma barragem rompe, tempestades varrem cidades ou incêndios se espalham por regiões inteiras, não somos atingidos apenas no corpo ou no patrimônio. Esse impacto vai fundo na mente, no sonho, no jeito de existir. A dor psíquica, o luto, o medo persistente, o sentimento de insegurança que fica fazem parte das cicatrizes invisíveis de toda calamidade. Pergunto a você: quando acontece uma tragédia, quem garante que você ou alguém que ama terá acesso a atendimento psicológico de verdade? E esse atendimento, estará preparado para emergências?
Neste artigo vamos analisar como anda o acesso aos serviços de saúde mental no Brasil em desastres, emergências, catástrofes; comparar com realidades internacionais; identificar barreiras; e sugerir caminhos. Vamos juntos pensar além da dor, no que podemos conquistar para que o sofrimento invisível seja reconhecido e tratado.
Situação do Brasil: realidades, desigualdades e desafios
Normas, políticas e iniciativas recentes
O Brasil tem dado passos importantes. O Ministério da Saúde lançou cartilhas e vídeos sobre saúde mental e atenção psicossocial voltadas para desastres e emergências, com foco no acolhimento de vítimas, perdas, lutos, primeiras semanas após o desastre. Um exemplo foi para o Rio Grande do Sul, atingido por tragédia climática, oferecendo material para qualificar profissionais no SUS. Será que foi o suficiente? Qual sua opinião? (Serviços e Informações do Brasil)
Também corre no Senado Federal um projeto (PL 1.897/2024) que sugere uma Política Nacional de Resiliência Psicossocial, com medidas de capacitação, aumento de unidades de acolhimento e adequação dos serviços da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) para responder melhor em situações de desastres ambientais. (Senado Federal)
Dados sobre os impactos e uso dos serviços
No Rio Grande do Sul, por exemplo, as enchentes de 2023 tiveram desdobramentos psíquicos marcantes: em 2024, houve 37.004 afastamentos do trabalho por transtornos mentais, sendo 10.274 casos de depressão e 7.792 casos de ansiedade. Esses números expõem que os desastres ambientais agravam demandas que já existem e geram novas emergências pessoais e sociais. (net-dr)
Estudo “Saúde mental das pessoas em situação de desastre” mostra aumento de procura por serviços psicológicos e diagnósticos de transtornos mentais após desastres, com dificuldades no acesso dependendo do município, da infraestrutura local, da capacidade dos profissionais e da presença de CAPS ou unidades de saúde mental. (Scielo)
Disparidades regionais: quem sofre mais, quem tem menos
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Estados como Rio Grande do Sul, Santa Catarina e áreas do Norte e Nordeste frequentemente enfrentam desastres climáticos ou ambientais que expõem populações vulneráveis, mas nem sempre há serviços disponíveis imediatamente para cuidado mental local.
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Municípios pequenos ou comunidades rurais frequentemente dependem de uma estrutura mínima de atenção básica que nem sempre está preparada para emergências psicológicas. A presença de um CAPS ou de unidades especializadas de urgência psiquiátrica pode fazer diferença decisiva, mas muitos municípios não têm. Estudos no estado de Minas Gerais apontam que 22,2% dos municípios tinham uma implementação “adequada” da rede de atenção psicossocial, 60,6% parcialmente adequada e 15,9% inadequada ou crítica. Isso significa que muitos lugares não estão prontos para atender em crises emergenciais. (BioMed Central)
Panorama internacional em segundo plano: tendências e modelos que inspiram
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Exposições repetidas a desastres ambientais em países como Austrália levaram a pioras na saúde mental: ansiedade, sintomas depressivos, estresse pós-traumático mais frequente quando desastres se acumulam em pouco tempo. (CNN Brasil)
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Diretrizes internacionais como as da OMS e da IASC recomendam que intervenções em emergências contemplem cuidado psicossocial desde as fases iniciais, escuta ativa, primeiros cuidados psicológicos, prevenção de traumas, e continuidade de atendimento.
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Em muitos países, serviços de emergência psiquiátrica têm sido estruturados com equipes especializadas, protocolos claros, articulação entre serviço de base comunitária, hospitais, serviços de urgência. Modelos de cuidado colaborativo e capacitação emergencial estão entre as boas práticas, especialmente onde há instabilidade climática ou risco de catástrofes.
Barreiras que congelam o acesso nos momentos que mais importam
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Infraestrutura física prejudicada ou inexistente em regiões afetadas; transporte difícil ou impossível após desastres.
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Falta de profissionais de saúde mental treinados para desastres; nos primeiros dias pós-evento muitas vezes só há atendimento improvisado ou nenhum atendimento especializado.
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Recursos limitados no SUS para saúde mental emergencial: CAPS e unidades especializadas podem estar longe, demandar encaminhamento, não atender urgência.
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Estigma, vergonha, falta de informação: muitos atingidos não reconhecem sua angústia como algo que pode ser tratado; preferem esperar ou ignorar.
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Falta de continuidade de cuidado: depois do primeiro período crítico do desastre, atenção volta a diminuir, fazendo com que transtornos persistentes ou agravados fiquem sem tratamento.
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Políticas públicas descoordenadas: estados diferentes têm graus variados de prontidão; planos de emergência muitas vezes priorizam abrigos, água, alimentação, mas pouco planejam para saúde mental.
Caminhos possíveis: práticas que salvam
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Capacitação emergencial imediata: treinar agentes comunitários, voluntários, profissionais da saúde básica para identificar sinais de sofrimento mental logo nos primeiros dias após evento.
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Rede de Atenção Psicossocial fortalecida: garantir que a RAPS esteja preparada para aumentar atendimentos em emergências, com mais CAPS, unidades de acolhimento, acesso remoto ou semi-presencial.
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Integração serviço comunitário e escolar: escolas, igrejas, espaços culturais podem servir de pontos de apoio psicológico emergencial, com escuta e encaminhamento.
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Uso da tecnologia: telepsicologia, aplicativos de suporte emocional, linhas de apoio emergencial; ferramentas de autoajuda com base científica.
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Políticas de longo prazo e resiliência psicossocial: não basta socorrer; é preciso prever, planejar, tornar serviços permanentes, promover educação em saúde mental nas populações com risco.
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Financiamento adequado: investimento público constante; evitar que saúde mental em emergências dependa apenas de ONGs ou iniciativas pontuais.
Provocação para reflexão
Se nossas leis reconhecem que saúde é direito de todos e que o SUS deve garantir assistência universal, por que quando a terra ruge ou a barragem rompe, tantas pessoas ficam sozinhas, em sofrimento invisível? Se desastres ambientais vão aumentar com as mudanças climáticas, por que não tratamos saúde mental não como algo opcional, mas como parte central da preparação e resposta? Qual comunidade estaria disposta a aceitar que uma parte sofrida de sua população fique sem voz, sem acolhimento, sem horizonte?
Conclusão
O Brasil avança, mas ainda há muito a conquistar para que “acesso a serviços de saúde mental em catástrofes e emergências” seja mais que slogan. Realidade exige políticas claras, profissionais formados, estrutura acessível, continuidade de cuidado, financiamento persistente. Devemos nos mover como sociedade para exigir isso: desde os gestores públicos até os vizinhos, famílias, voluntários. Cada desastre revela onde faltamos; cada recuperação pode nos mostrar caminhos de justiça psíquica, de suporte real. Deixo você com uma pergunta para carregar: se amanhã sua região for atingida por uma tragédia, você saberia a quem recorrer para cuidar também da sua mente? Se a resposta for “não”, que isso nos leve a agir hoje.
Referências bibliográficas
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Ministério da Saúde. Ministério lança material sobre saúde mental e atenção psicossocial para profissionais que atuam em desastres. Brasília, 2024. (Serviços e Informações do Brasil)
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Estudo “Impacto dos desastres ambientais na saúde mental evidências do Brasil e do mundo” – net-dr.org, 2025. (net-dr)
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Estudo internacional “Viver sucessivos desastres ambientais piora saúde mental”, Universidade de Melbourne / The Lancet Public Health, 2025. (CNN Brasil)
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Rafaloski AR et al. Saúde mental das pessoas em situação de desastre. SciELO Brasil, 2020. (Scielo)
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Coelho VAA et al. Avaliação da Rede de Atenção Psicossocial em Minas Gerais: estrutura e processos. (BioMed Central)
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Baldaçara L, Ismael F, Kawakami D, da Rocha GA, Calfat ELB, Porto DM, et al. Brazilian Psychiatric Association consensus on the ideal infrastructure and team for psychiatric emergency services in Brazil. Braz J Psychiatry. 2024. (pmc.ncbi.nlm.nih.gov)

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