A Contratransferência é Saudável na Análise? O Analista Também Sente
A Contratransferência é Saudável na Análise? O Analista Também Sente.
Imagine a cena clássica: o paciente deitado no divã e, atrás dele, a figura do analista, um espelho impassível, uma tela em branco onde se projetam as angústias e desejos mais profundos. Por décadas, essa imagem de neutralidade absoluta dominou o imaginário popular e até mesmo a formação de muitos terapeutas. Mas e se eu lhe dissesse que essa tela não está tão em branco assim? E mais, e se eu lhe dissesse que o que o analista sente, as emoções, imagens e impulsos que emergem nele durante uma sessão, pode ser a bússola mais precisa para a sua cura? Este terreno complexo e fascinante é o da contratransferência, e hoje vamos desafiar a ideia de que ela é apenas um obstáculo a ser superado.
Desvendando o Terreno: O Que é, Afinal, a Contratransferência?
De forma simples e direta, a contratransferência é o conjunto de todas as reações emocionais do analista em relação ao seu paciente. Isso inclui sentimentos, fantasias, lembranças e impulsos que a presença e o discurso do analisando despertam. A história desse conceito dentro da psicanálise é, por si só, reveladora.
Inicialmente, para Sigmund Freud, a contratransferência era vista como um perigo, uma mancha na neutralidade necessária. Seria o resultado dos conflitos não resolvidos do próprio analista, seus "pontos cegos", que poderiam contaminar a análise e atrapalhar a escuta. Nessa visão, a contratransferência era algo a ser eliminado através da análise pessoal e da supervisão.
Contudo, a psicanálise não parou em Freud. Pensadores posteriores, como a britânica Paula Heimann e o argentino Heinrich Racker, revolucionaram essa perspectiva. Eles começaram a se perguntar: e se esses sentimentos do analista não fossem apenas "lixo" de seu próprio inconsciente, mas uma resposta direta e sensível ao inconsciente do paciente? Nascia ali a ideia da contratransferência como uma poderosa ferramenta clínica, um órgão de percepção.
Quando o Sentimento se Torna Bússola: A Utilidade Clínica
A virada de chave está em entender que o analista não usa seus sentimentos para falar de si, mas para compreender o mundo interno de quem ele escuta. Heinrich Racker, em seu livro clássico "Estudos sobre a Técnica Psicanalítica", propôs que o analista pode sentir o que o paciente sente (o que chamou de contratransferência concordante) ou sentir o que o paciente faz os outros sentirem (contratransferência complementar).
A neurociência moderna veio, curiosamente, dar um suporte biológico a essa intuição psicanalítica. A descoberta dos neurônios espelho por Giacomo Rizzolatti e sua equipe mostrou que nosso cérebro possui sistemas que disparam tanto quando fazemos uma ação quanto quando observamos alguém fazendo a mesma ação. Essa base da empatia e da compreensão intersubjetiva sugere que a "ressonância" do analista não é mágica; é um processo neurobiológico. O analista, ao escutar, literalmente espelha em seu próprio cérebro os estados emocionais de seu paciente, muitas vezes antes que o próprio paciente consiga nomeá-los.
Filosoficamente, essa dinâmica eleva a análise para além de um procedimento técnico. O filósofo Martin Buber diferencia a relação "Eu-Isso", onde um sujeito observa um objeto, da relação "Eu-Tu", um encontro genuíno entre dois seres. A contratransferência, quando bem manejada, é a prova de que a análise é um encontro "Eu-Tu". O analista não é um cientista dissecando um objeto; ele é um ser humano em ressonância com outro, e é nessa humanidade compartilhada que a cura se torna possível.
A Teoria na Prática: 3 Exemplos de Contratransferência como Ferramenta
A Angústia Silenciosa: Um paciente fala de forma racional e controlada sobre uma importante decisão de carreira, sem demonstrar qualquer emoção. Durante a sessão, o analista começa a sentir uma inexplicável e crescente angústia, um aperto no peito. Em vez de descartar isso como um problema seu, ele usa essa informação. Ele pode intervir dizendo: "Enquanto você me fala de forma tão calma sobre essa mudança, algo em mim se sente extremamente angustiado. Será que uma parte sua, que não está conseguindo falar, se sente assim?". O sentimento do analista dá voz à parte cindida e reprimida do paciente.
O Tédio Revelador: Um paciente narra eventos de sua vida de forma monótona e desvitalizada. O analista começa a sentir um tédio profundo, uma sonolência quase incontrolável. Em vez de se culpar por sua "falta de atenção", ele percebe que o tédio não é seu. É o afeto que o paciente está evacuando. O paciente, para não entrar em contato com a dor ou o vazio de suas experiências, as torna entediantes. O tédio do analista é a pista de que ali existe uma defesa poderosa contra um sentimento insuportável.
A Irritação como Mapa Relacional: Um paciente consistentemente se atrasa, "esquece" o pagamento ou faz comentários sutilmente desqualificadores. O analista nota em si um sentimento crescente de irritação. Ele compreende que essa irritação é, muito provavelmente, o sentimento que o paciente gera em todas as suas relações íntimas (cônjuge, filhos, chefe). A sessão se torna um laboratório vivo onde o padrão relacional do paciente se manifesta, e o sentimento do analista é o principal indicador desse padrão.
O Fio da Navalha: Riscos e o Manejo Clínico
Afirmar que a contratransferência é saudável não significa que ela seja isenta de perigos. O risco não está em sentir, mas em atuar o sentimento (o famoso "acting out"). Se o analista irritado se torna agressivo, ou se o analista que sente um afeto protetor começa a dar conselhos, ele abandona sua função. É aqui que a análise pessoal contínua e a supervisão clínica se tornam pilares éticos indispensáveis. São esses espaços que permitem ao analista diferenciar o que é seu do que é do paciente, transformando a reação bruta em uma ferramenta clínica refinada.
Conclusão: A Sala de Análise como Encontro Humano
A psicanálise moderna nos convida a abandonar a fantasia de um analista robótico. A sala de análise é o espaço de um encontro profundamente humano, e a contratransferência é a prova disso. Ela é o testemunho de que, para além da teoria, o que cura é a possibilidade de se sentir genuinamente visto, ouvido e compreendido por outro ser humano. Um ser que não apenas escuta suas palavras, mas que tem a coragem de sentir com você e de usar esse sentimento como um mapa para te guiar de volta para casa. Será que a verdadeira travessia analítica não reside justamente na coragem de permitir que um encontro autêntico, com todas as suas ressonâncias, finalmente aconteça?
Para Aprofundar no Tema: 3 Livros Essenciais
Estudos sobre a Técnica Psicanalítica de Heinrich Racker (Disponível na Amazon Brasil): A obra fundamental que redefiniu a contratransferência como ferramenta. Leitura densa e indispensável para profissionais.
A Técnica Psicanalítica nos Dias Atuais de Glen O. Gabbard (Disponível na Amazon Brasil): Um manual moderno e abrangente que discute a contratransferência e outros temas técnicos de forma clara e aplicada a casos clínicos.
O Erro de Descartes: Emoção, Razão e o Cérebro Humano de António Damásio (Disponível na Amazon Brasil): Embora não seja um livro de psicanálise, é uma obra essencial da neurociência que demonstra como a emoção é inseparável da razão e da tomada de decisões, fornecendo uma base científica para a importância dos afetos na terapia.
Referências Bibliográficas:
BUBER, Martin. Eu e Tu. Editora Centauro.
FREUD, Sigmund. As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica (1910). Obras Completas.
RACKER, Heinrich. Estudos sobre a Técnica Psicanalítica. Editora Artmed.
RIZZOLATTI, Giacomo; SINIGAGLIA, Corrado. As We Act: The Neuronal Basis of Social Behavior. MIT Press, 2008.

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