Lacan, o Nome-do-Pai e a Lei Simbólica: Entre Psicanálise, Filosofia e Neurociência

Lacan, o Nome-do-Pai e a Lei Simbólica: Entre Psicanálise, Filosofia e Neurociência

Quando me detenho na função do nome-do-pai em Lacan e na lei simbólica, percebo que estamos diante de um dos pilares mais complexos e ao mesmo tempo fundamentais da psicanálise. Lacan nos mostra que o pai não se reduz à figura biológica ou ao homem de carne e osso, mas é um significante, um lugar simbólico que organiza a entrada do sujeito no campo da linguagem e da cultura. Freud, em Totem e Tabu, já havia intuído isso ao mostrar que o pai é aquele que institui a interdição do incesto, transformando a violência em lei. Lacan vai além: o “Nome-do-Pai” não é o pai real, mas a função que simboliza a lei, a ordem e a falta necessária para que o desejo se constitua.

Na clínica, observo como essa função pode sustentar ou fragilizar a subjetividade. Quando a função paterna se inscreve, o sujeito encontra uma referência simbólica que regula o excesso do desejo materno, evitando que se perca no gozo absoluto do Outro. Lacan afirmou: “É pela função paterna que o desejo da mãe é pacificado”. O pai simbólico, portanto, não é uma figura de autoridade rígida, mas a estrutura que organiza a vida psíquica, introduzindo a dimensão do limite e da lei.

Essa ideia me remete à filosofia kantiana, onde a lei moral é pensada como imperativo categórico, uma regra interna que orienta a ação humana sem precisar de coerção externa. Da mesma forma, o nome-do-pai funciona como lei simbólica, não necessariamente encarnada em alguém, mas operando na linguagem, nas escolhas e nos limites que organizam o sujeito.

A neuropsicanálise, embora não fale diretamente do nome-do-pai, contribui ao mostrar como o cérebro desenvolve mecanismos de regulação do comportamento e da inibição de impulsos. Pesquisas de Mark Solms e Jaak Panksepp demonstram que os sistemas emocionais básicos e os circuitos de regulação afetiva sustentam nossa capacidade de lidar com a frustração e de adiar a satisfação imediata. É como se o nome-do-pai tivesse também uma dimensão neurobiológica: a mediação entre o impulso e a simbolização.

Na poesia, encontro um eco dessa concepção em Fernando Pessoa, quando escreve: “O homem é um animal que se ilude do que é.” O nome-do-pai é essa ilusão necessária, esse lugar simbólico que dá ao sujeito a sensação de que existe uma ordem maior, um limite que protege do caos do desejo.

Minha provocação é a seguinte: vivemos hoje o que muitos chamam de “declínio do pai”. A função paterna parece enfraquecida, as referências simbólicas tradicionais se desmoronam, e vivemos sob a égide de novas formas de lei. Mas será que o nome-do-pai desapareceu? Ou apenas mudou de rosto? Talvez hoje ele esteja encarnado em algoritmos, em lógicas de mercado, em discursos midiáticos que regulam nossos desejos sem que percebamos. E me pergunto: o que acontece quando não reconhecemos mais o nome-do-pai, mas seguimos submetidos a leis invisíveis? Talvez o verdadeiro desafio da psicanálise contemporânea seja decifrar essas novas formas de lei simbólica que moldam nosso inconsciente.

Referências bibliográficas

  • Freud, S. Totem e Tabu. Obras Completas. Companhia das Letras, 2013.

  • Freud, S. O Ego e o Id. Obras Completas. Companhia das Letras, 2011.

  • Lacan, J. Escritos. Zahar, 1998.

  • Lacan, J. O Seminário, Livro 5: As Formações do Inconsciente. Zahar, 1999.

  • Solms, M. The Hidden Spring: A Journey to the Source of Consciousness. W.W. Norton & Company, 2021.

  • Panksepp, J. Affective Neuroscience: The Foundations of Human and Animal Emotions. Oxford University Press, 1998.

  • Kant, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Vários tradutores.

  • Pessoa, F. Livro do Desassossego.

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