Os Quatro Temperamentos e a Antiga Arte de Ler a Alma Humana
A humanidade sempre buscou compreender o enigma que pulsa por trás dos olhos de cada pessoa. Antes mesmo de a psicanálise nascer, já havia tentativas de classificar o que hoje chamamos de personalidade. Entre esses modelos, poucos sobreviveram tão longamente quanto a teoria dos quatro temperamentos. Mais do que uma curiosidade histórica, trata-se de uma lente que atravessou milênios, unindo medicina, filosofia e psicologia. Sua origem remonta à Grécia Antiga, quando Hipócrates, considerado o pai da medicina, lançou as bases dessa classificação. Séculos depois, Galeno refinou e ampliou essa teoria, estabelecendo uma visão de mundo onde corpo e alma dançavam ao mesmo ritmo dos humores que circulavam em nossas veias.
Essa antiga concepção não apenas moldou a medicina ocidental por mais de mil anos, mas também influenciou profundamente a forma como entendemos a natureza humana. Ainda que a ciência moderna já tenha abandonado a literalidade dessa teoria, seu valor simbólico e metafórico continua sendo explorado por psicólogos, educadores e psicanalistas que compreendem que, às vezes, o mito diz mais sobre a alma do que a estatística.
A origem da teoria dos humores
Hipócrates (c. 460-370 a.C.) partiu de uma observação simples e ousada para seu tempo: a saúde dependia do equilíbrio de quatro líquidos ou “humores” do corpo. Esses humores eram o sangue, a bílis amarela, a bílis negra e a fleuma. Para ele, a doença surgia quando um desses elementos estava em excesso ou deficiência. Mas Hipócrates foi além da medicina física. Ele sugeriu que a proporção desses humores influenciava também o temperamento, o modo de ser, a disposição emocional de cada pessoa.
Séculos depois, o médico romano Galeno (c. 129-216 d.C.) não apenas herdou essa ideia como a organizou em um sistema mais elaborado. Ele descreveu quatro tipos fundamentais de personalidade: o sanguíneo, o colérico, o melancólico e o fleumático. A relação entre corpo e espírito, para Galeno, era inseparável. A alma não pairava sobre o corpo como um fantasma, mas vivia misturada ao sangue, à seiva que corria dentro de nós.
Os quatro temperamentos
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Sanguíneo: Associado ao sangue, ligado à alegria, sociabilidade e otimismo. O sanguíneo é expansivo, busca companhia e sente prazer em interagir.
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Colérico: Relacionado à bílis amarela, simbolizando energia, ambição e liderança. É determinado, às vezes impulsivo, e tende a agir antes de pensar.
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Melancólico: Associado à bílis negra, representando profundidade, introspecção e sensibilidade. É o tipo que se perde em pensamentos e vê o mundo com certa gravidade.
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Fleumático: Ligado à fleuma, traduz calma, constância e paciência. É estável, confiável, mas pode ser excessivamente passivo diante das mudanças.
Essas descrições, embora antigas, tocam algo que ainda reconhecemos hoje. Não porque nossos corpos estejam cheios de “biles”, mas porque nossos estados emocionais têm padrões, ritmos e inclinações que se repetem.
O valor simbólico e psicanalítico
A psicanálise não trabalha com a ideia de humores corporais, mas entende muito bem o conceito de disposições afetivas persistentes. Freud, ao estudar as neuroses, já reconhecia que certas configurações psíquicas se organizam como tendências estáveis ao longo da vida. Lacan, por sua vez, destacaria que a estrutura é mais determinante que o conteúdo. O que Galeno e Hipócrates chamavam de “temperamento” talvez possamos entender hoje como modos recorrentes de investir energia psíquica no mundo.
Essa teoria também nos lembra de algo fundamental: somos atravessados por forças que não controlamos. Nosso humor do dia, nossa disposição, nossa tendência à ação ou à reflexão profunda, tudo isso tem raízes mais antigas do que supomos. Quando olhamos para os quatro temperamentos, não estamos apenas lendo uma velha teoria médica; estamos vendo um espelho simbólico da própria condição humana.
Por que ainda nos fascina
Vivemos em uma era de diagnósticos rápidos, testes de personalidade online e rótulos psicológicos prontos para consumo. Mas a teoria dos quatro temperamentos sobrevive, não como ciência exata, mas como narrativa arquetípica. É uma linguagem que conversa com a alma e nos convida a reconhecer em nós mesmos e nos outros esses padrões primordiais. Mesmo que o fundamento biológico da teoria tenha sido superado, sua força imaginativa permanece viva.
Conclusão provocativa
Talvez não tenhamos mais médicos receitando sangrias para corrigir um temperamento colérico. Mas a pergunta que Hipócrates e Galeno nos deixaram continua ecoando: até que ponto somos donos de nós mesmos? O que nos move é nossa vontade consciente ou a corrente invisível de um temperamento que nasceu conosco? A psicanálise diria que somos sujeitos do inconsciente, governados por forças que mal conhecemos. E, no fundo, talvez essa antiga teoria dos humores não seja tão distante disso. Ela apenas usou o corpo como metáfora para falar da alma. E como toda boa metáfora, continua a nos perseguir.
Referências bibliográficas
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HIPÓCRATES. Aforismos. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005.
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GALENO. On the Temperaments. Trad. Phillip De Lacy. Berlin: Akademie Verlag, 1991.
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FREUD, Sigmund. Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
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LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
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PORTER, Roy. The Greatest Benefit to Mankind: A Medical History of Humanity. London: HarperCollins, 1997.
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