No breve e denso texto “Neurose e Psicose” (1924), Sigmund Freud nos oferece uma contribuição essencial para compreender as estruturas clínicas fundamentais da psicanálise. Mesmo que a perversão não seja o foco central do ensaio, ela se articula à reflexão de maneira implícita, pois, para Freud, as neuroses, as psicoses e as perversões não são doenças isoladas, mas modos distintos de resposta do sujeito diante da realidade, do desejo e da perda estrutural que marca a condição humana.
Freud parte de um ponto essencial: toda experiência subjetiva se organiza a partir do conflito entre o Eu (ego), o mundo externo e as exigências pulsionais do inconsciente. A subjetividade não é um dado pronto. Ela se constitui por meio de defesas, recalques, construções simbólicas e tentativas de dar sentido àquilo que escapa à razão. Nesse cenário, a realidade externa impõe limites, e o sujeito precisa lidar com a frustração, com a perda e com o interdito. É nesse embate entre o desejo e a realidade que surgem as formações clínicas: neurose, psicose e perversão são, nesse sentido, modos diferentes de lidar com a castração simbólica.
Na neurose, o sujeito reconhece a realidade, mas paga um preço alto por isso: recalca seu desejo. Em outras palavras, há um reconhecimento da castração, mas à custa da renúncia pulsional. A neurose é a estrutura marcada pelo conflito entre o desejo inconsciente e as exigências do Supereu, resultando em sintomas, angústias, fobias, obsessões e inibições. O neurótico sofre, muitas vezes, por não saber o que deseja, ou por desejar aquilo que não pode realizar. Ele negocia com o interdito, mas essa negociação é sempre parcial, tensa, e por vezes, paralisante.
Na psicose, ocorre algo radicalmente diferente. Aqui, não há recalque, mas uma foraclusão termo que será desenvolvido por Lacan mais tarde. O sujeito não recusa o desejo, mas recusa a própria realidade simbólica. Ele não aceita a castração, não reconhece a falta estruturante. Quando essa castração retorna, ela o invade de forma brutal, sem mediação, produzindo delírios ou alucinações. A realidade, tal como compartilhada socialmente, se rompe. A psicose, então, não é uma simples fuga da realidade, mas a tentativa de reconstruí-la por outros meios. O delírio psicótico é uma tentativa de remendar o real. Freud, ao analisar o caso Schreber, mostra que o delírio pode funcionar como uma forma de "cura", uma tentativa criativa e singular de reestabelecer um mundo simbólico colapsado.
A perversão, por sua vez, não é abordada diretamente em "Neurose e Psicose", mas pode ser pensada como um terceiro modo de resposta à castração. O perverso não recalca o desejo como o neurótico, nem rompe com o simbólico como o psicótico. Ele nega a castração. Em termos psicanalíticos, a negação não é ausência de saber, mas uma forma ativa de dizer "isso não me afeta", enquanto o sujeito se organiza em torno da recusa simbólica da falta. O perverso se posiciona como aquele que goza fora da norma, mas que depende, paradoxalmente, da norma para sustentar seu gozo. Ele cria uma cena em que pode manipular o desejo do outro, situando-se muitas vezes como objeto para preencher a falta alheia. Ele não ignora o simbólico, mas o contorna. Por isso, sua estratégia é sedutora, teatral e muitas vezes transgressora.
Freud nos convida, com esse texto, a pensar que essas estruturas não devem ser vistas como categorias moralizantes ou como falhas do sujeito, mas como formas de inscrição subjetiva. O neurótico sofre do desejo, o psicótico sofre da perda do mundo simbólico, o perverso goza na tentativa de evitar a castração. Cada estrutura carrega sua ética, sua linguagem, sua lógica interna.
Em termos filosóficos, poderíamos dizer que as três estruturas representam diferentes modos de lidar com o trágico da condição humana: a impossibilidade de plenitude, a incompletude do Outro, a existência da falta. A neurose dramatiza essa falta, a psicose a nega radicalmente, e a perversão tenta instrumentalizá-la. São, cada uma à sua maneira, tentativas de subjetivação diante do Real, esse ponto opaco que resiste a toda simbolização.
Com Lacan, essas três formas clínicas ganham ainda mais precisão estrutural. No famoso “Quadro dos Quatro Discursos”, ele mostra como cada posição subjetiva se articula com o saber, com o gozo e com o desejo. A neurose se prende ao discurso do Outro; a psicose é o colapso desse Outro; a perversão se instala como uma resposta estratégica, sustentando o gozo em uma cena que mascara a ausência da Lei.
Entender a neurose, a psicose e a perversão é, portanto, compreender algo fundamental sobre a experiência humana: que não há normalidade como regra absoluta. Cada sujeito responde ao enigma do desejo de maneira única, e é essa resposta que a psicanálise escuta sem julgamentos, mas com ética, com rigor e com abertura à singularidade.
Referências bibliográficas
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Freud, Sigmund. Neurose e Psicose (1924). In: Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. XIX. Imago, 1996
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Freud, Sigmund. O Eu e o Id (1923). Imago, 1996
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Freud, Sigmund. Notas Psicanalíticas sobre um Relato Autobiográfico de um Caso de Paranoia (Caso Schreber, 1911).
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Lacan, Jacques. O Seminário, Livro 17: O Avesso da Psicanálise. Zahar, 1992
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Laplanche, Jean; Pontalis, Jean-Bertrand. Vocabulário da Psicanálise. Martins Fontes, 2001
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Nasio, Juan-David. Estruturas e Clínica das Psicoses. Zahar, 2005
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