A fase oral é a primeira etapa do desenvolvimento psicossexual do ser humano segundo a teoria freudiana. Ela se estende, aproximadamente, do nascimento até o primeiro ano e meio de vida, marcando um período em que a boca é a principal zona erógena. No entanto, reduzir essa fase a uma simples questão de alimentação seria empobrecer profundamente sua complexidade. A oralidade não é apenas um estágio biológico ou fisiológico: é um lugar inaugural do encontro com o mundo, com o outro e, sobretudo, com o desejo.
Para a psicanálise, o recém-nascido é um ser atravessado por uma radical dependência. Ele não se basta. Precisa do outro geralmente a mãe ou a figura materna para sobreviver. A satisfação das suas necessidades mais básicas não ocorre de modo automático, mas mediada por um campo de afetos, de cuidados, de palavras e de gestos. A boca, nesse cenário, torna-se o primeiro instrumento de relação com o mundo externo. Ao mamar, o bebê não apenas se alimenta: ele se vincula, reconhece, deseja e é desejado. É nessa experiência de ser alimentado, de sentir o calor do corpo materno, de escutar uma voz, que ele inaugura algo do laço social e do registro simbólico.
Freud nos mostra que o bebê encontra prazer na atividade de sucção, não apenas porque ela alivia a fome, mas porque traz consigo uma dimensão libidinal. Há um gozo que se instala na boca, um prazer que ultrapassa a satisfação da necessidade. É esse excesso esse além do necessário que constitui o terreno do desejo. A boca, então, se torna a cena de um teatro primitivo: nela se inscrevem os primeiros traços da alteridade e da subjetividade.
Jacques Lacan, ao reler Freud, aprofunda essa ideia ao afirmar que o objeto oral o seio, o leite, o mamilo é o primeiro “objeto a”, o objeto causa de desejo. O bebê, ao perder esse objeto (já que ele nunca o possui plenamente), entra no campo da falta. E é essa falta que o constitui como sujeito. O desejo nasce justamente aí, onde algo do prazer se ausenta, onde o objeto não pode ser plenamente retomado. Essa perda fundamental, longe de ser um dano, é a condição de possibilidade para o ser humano se tornar desejante, criativo, falante.
Na fase oral, portanto, a criança experimenta seu primeiro contato com a alteridade. O seio, que ora está presente e ora ausente, não lhe pertence, mas vem do outro. Nesse movimento, ela começa a perceber que não é onipotente, que há limites, que há um mundo externo que escapa ao seu controle. Essa frustração é estrutural, e ao mesmo tempo formativa. A ausência do seio é o primeiro "não" que o sujeito encontra na vida, e com isso se inaugura o campo do simbólico.
Do ponto de vista filosófico, poderíamos dizer que a fase oral encarna um paradoxo essencial da existência humana: o desejo como aquilo que nos move justamente porque não pode ser plenamente saciado. Platão, em seu diálogo "O Banquete", fala do amor como falta, como impulso em direção ao que nos falta. Já Simone Weil afirma que a atenção amorosa é uma fome que escolhe permanecer faminta. Esses pensamentos ecoam a noção psicanalítica de que somos seres marcados por um vazio estrutural, e é esse vazio que nos impulsiona a viver, criar, amar, sonhar.
A fase oral deixa marcas em nossa estrutura psíquica, mesmo após sua superação cronológica. Adultos que apresentam comportamentos orais persistentes como fumar, roer unhas, comer compulsivamente ou falar em excesso podem estar expressando uma fixação nessa fase. Em termos simbólicos, é como se buscassem, por meio da boca, uma satisfação que remonta a esse momento inaugural. Mais do que sintomas, esses comportamentos nos falam de uma tentativa de recompor um vínculo perdido, de restaurar algo que ficou fixado no tempo.
Entretanto, é importante lembrar que a fixação não é um erro ou uma falha. Ela faz parte do modo como cada sujeito constrói sua história. A oralidade está presente também na capacidade de falar, escutar, beijar, cantar, narrar. Está no gosto pela palavra, pelo vinho, pela comunhão, pelo afeto. A boca não é apenas lugar da falta; é também lugar da criação, da partilha, do encontro. Na tradição cristã, o pão partilhado é sinal de amor. No campo da poesia, a palavra dita é carícia e gesto. Na vida cotidiana, um “bom dia” pode abrir mundos.
Em suma, a fase oral é mais do que um estágio do desenvolvimento infantil: é a matriz de todas as nossas relações futuras com o desejo, com o outro e com o mundo. É nela que se esboça a possibilidade de amar, de simbolizar, de habitar o tempo com esperança. Entender essa fase é compreender algo profundo sobre a nossa condição humana: nascemos dependentes, somos marcados pela falta, e é justamente por isso que podemos desejar, criar e transformar.
A fase oral nos ensina que, antes de sermos sujeitos do pensamento, somos corpos afetados. E que todo desejo nasce, de algum modo, da experiência de ter sido alimentado não apenas com leite, mas com presença, com escuta, com amor. A boca do bebê é o primeiro lugar onde o mundo entra. Mas é também onde, simbolicamente, ele começa a sair: como palavra, como sopro, como canção.
Referências bibliográficas
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Freud, Sigmund. Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. Imago, 1905.
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Lacan, Jacques. O Seminário, Livro 11: Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. Zahar, 1985.
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Laplanche, Jean; Pontalis, Jean-Bertrand. Vocabulário da Psicanálise. Martins Fontes, 2001.
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Plato. O Banquete. Diversas edições.
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Weil, Simone. A Gravidade e a Graça. Vozes, 2002.
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Nasio, Juan-David. O Inconsciente: Um Estudo Psicanalítico. Zahar, 1997.
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