A traição é, talvez, uma das experiências humanas mais difíceis de assimilar. Quem a sofre sente-se atingido em sua dignidade, em sua confiança, na estrutura que sustentava uma relação. Quem a comete, muitas vezes, encontra-se dividido entre o impulso e a culpa, entre o desejo e o interdito. Culturalmente associada à deslealdade, à quebra de confiança, à ferida narcísica, a traição é mais do que um ato moralmente reprovável. É, para a psicanálise, um fenômeno que revela as camadas subterrâneas do desejo humano, suas ambiguidades, suas faltas, suas fantasias.
O que nos trai, afinal? Seria o outro ou nosso próprio desejo? É possível trair alguém sem, antes, trair a si mesmo?
Para começar a pensar a traição à luz da psicanálise, é necessário abandonar as categorias binárias de certo e errado, inocente e culpado. Freud nos ensinou que o sujeito é dividido, movido por pulsões que nem sempre obedecem à lógica da moral ou da consciência. A traição, nesse sentido, não é apenas um desvio de caráter, mas uma expressão muitas vezes silenciosa e inconsciente de conflitos internos, de desejos recalcados, de fantasias que atravessam a constituição do sujeito.
Na estrutura da relação amorosa, o traído frequentemente ocupa a posição de quem foi enganado, enganado pelo outro e, sobretudo, por sua própria crença de que havia um pacto estável, seguro, inabalável. Lacan, ao retomar o amor na chave do desejo, afirma que amar é dar o que não se tem a alguém que não o quer. A fórmula, aparentemente enigmática, revela algo essencial: o amor, como tudo que se articula no campo do desejo, é atravessado pela falta, pela incompletude, pelo risco.
A traição, assim, não rompe algo que era pleno; ela revela uma rachadura que sempre esteve ali, mesmo que encoberta por idealizações. Ao trair ou ser traído, o sujeito é confrontado com sua própria castração, com o fato de que não é tudo para o outro, de que não o possui, de que há um gozo que lhe escapa. Esse é o ponto fundamental: na psicanálise, o outro não é um objeto que se tem. Ele é, sempre, um enigma, um lugar de alteridade radical.
Quem trai, por sua vez, pode estar em busca de algo que nem ele mesmo compreende. Muitas vezes, o ato da traição não é movido por falta de amor, mas por um desejo de reencontro com algo perdido, um pedaço da própria identidade, um sentido de liberdade, uma excitação que remete à juventude, à fantasia, ao impossível. O traidor não é, necessariamente, alguém sem ética, mas um sujeito que tenta, de forma atravessada, resolver um impasse entre o desejo e a norma, entre o Eu ideal e o Ideal do Eu.
Freud, em textos como O Eu e o Id, nos mostra que a instância do Supereu está frequentemente implicada nesses conflitos. O Supereu, herdeiro das identificações parentais, impõe uma moral rígida, mas também goza com a culpa. Assim, muitas vezes, o sujeito trai e, logo em seguida, sofre com remorso não apenas por ferir o outro, mas por se ver diante do seu próprio abismo. Lacan aprofunda essa noção ao falar do gozo como aquilo que ultrapassa o princípio do prazer: há, na traição, um excesso que não pode ser simbolizado totalmente uma experiência de transgressão que toca o Real, o impossível de ser dito.
Trair, nesse sentido, pode ser também um ato de fuga do lugar que se ocupa numa relação. Alguém que se sente sufocado, infantilizado ou idealizado pode trair como quem tenta rasgar o papel que lhe foi atribuído. A traição, então, se apresenta como um sintoma: um modo falho, mas expressivo, de dizer “não quero mais esse lugar”. E como todo sintoma, ele diz algo verdadeiro, ainda que de modo torto.
Não se trata aqui de justificar a traição. A psicanálise não oferece desculpas, mas busca compreender o sujeito em sua singularidade. Cada caso é único, cada história amorosa é tecida por palavras, silêncios, expectativas, frustrações e pactos explícitos ou não. A traição rompe esse tecido e expõe o que estava mal costurado. Mas ela pode também ser o início de um novo laço, mais real, menos idealizado.
Por fim, a traição toca num ponto crucial da estrutura subjetiva: a ilusão de completude. Desejamos, inconscientemente, ser tudo para o outro, ocupar todo o seu campo de desejo. E sofremos quando descobrimos que o outro deseja “alhures”, que existe nele um espaço que nos escapa. Esse furo é estrutural. E, no entanto, é justamente ele que torna o amor possível. Pois só se pode amar verdadeiramente quando se aceita que o outro é outro que ele não nos pertence, e que, apesar disso (ou por isso mesmo), escolhemos continuar a amar.
Referências bibliográficas
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