Pular para o conteúdo principal

A Chegada da Psicanálise ao Brasil: ecos de Freud sob o céu tropical

A Chegada da Psicanálise ao Brasil: ecos de Freud sob o céu tropical

A Chegada da Psicanálise ao Brasil: ecos de Freud sob o céu tropical

A psicanálise, nascida no coração da Europa oitocentista pelas mãos de Sigmund Freud, levou algum tempo para atravessar os mares e chegar à América do Sul. Mas quando finalmente aportou no Brasil, encontrou uma terra fértil, contraditória, mística e marcada por profundos dilemas sociais, emocionais e culturais. Era como se o inconsciente brasileiro já estivesse pronto para ser escutado.

As primeiras menções a Freud no Brasil datam do início do século XX, mais especificamente por volta de 1910 a 1915. Porém, foi somente nas décadas de 1920 e 1930 que seu pensamento começou a ser traduzido, lido e debatido com mais força. No começo, Freud era lido quase clandestinamente, por médicos interessados em neurologia ou psiquiatria. Suas ideias pareciam estranhas, perigosas, até mesmo subversivas. Falar de sexualidade infantil, desejos inconscientes, sonhos e histeria num país católico, patriarcal e conservador era um desafio que exigia coragem e paixão.

Um dos pioneiros da psicanálise no Brasil foi Durval Marcondes, médico paulista que fundou, em 1927, o primeiro centro brasileiro de psicanálise: o Instituto de Higiene da Faculdade de Medicina da USP. Em São Paulo, ele iniciou uma aproximação entre a psicanálise e a educação, criando o Serviço de Higiene Mental Escolar. Marcondes acreditava que a escuta psicanalítica podia ajudar a prevenir doenças mentais desde a infância. Sua proposta era aplicar as ideias freudianas no campo da saúde pública e da pedagogia. Foi também o responsável pela criação da SBPSP (Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo), oficialmente filiada à IPA (Associação Psicanalítica Internacional) em 1942.

Outro nome importante foi Julieta Calmon, no Rio de Janeiro. Ela teve contato direto com as ideias de Freud e com analistas europeus e foi uma das responsáveis por difundir o pensamento psicanalítico entre intelectuais cariocas. A capital federal era na época um centro vibrante de debates, e as ideias psicanalíticas circularam entre escritores, médicos e artistas.

Na década de 1950, com o avanço da Segunda Guerra Mundial e a perseguição nazista, muitos psicanalistas judeus europeus fugiram da Europa e vieram para o Brasil. Eles trouxeram na bagagem não apenas livros e saberes, mas uma sensibilidade clínica refinada e uma fidelidade profunda à obra de Freud. Um dos mais marcantes foi o austríaco Rudolf Loewenstein, que ficou por um tempo no Brasil antes de seguir para os Estados Unidos.

Durante esse período, a psicanálise se consolidou principalmente nas grandes cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre. Foram fundadas sociedades psicanalíticas, cursos de formação, grupos de estudo e revistas especializadas. A psicanálise começou a dialogar com outras áreas do saber: a literatura, a filosofia, a medicina, a antropologia. Pensadores como Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e Lygia Fagundes Telles beberam, de forma direta ou indireta, nas fontes freudianas.

Já nas décadas de 1960 e 1970, com o surgimento das ideias de Jacques Lacan na França, o Brasil passou por um novo movimento de renovação teórica. Lacan propunha um retorno a Freud pela via da linguagem, da estrutura, da topologia e do desejo. Sua obra chegou por meio de intelectuais como Doris Rabinovich, Nise da Silveira, José Arthur Gianotti, Octavio de Faria e, principalmente, Jacques-Alain Miller, que estabeleceu vínculos com escolas brasileiras.

Nesse momento, surgiram movimentos mais críticos às instituições tradicionais de formação. Em São Paulo nasceu a Escola Brasileira de Psicanálise, ligada à Associação Mundial de Psicanálise, inspirada diretamente pela leitura lacaniana. No Rio de Janeiro, a Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano também ganhou força. O campo se diversificou. A psicanálise deixou de ser apenas uma prática clínica silenciosa nos consultórios. Passou a dialogar com movimentos sociais, com a clínica da loucura, com a arte marginal e com as urgências políticas do país.

Destaca-se aqui o trabalho da psiquiatra e psicanalista Nise da Silveira, discípula rebelde de Carl Gustav Jung, que desenvolveu no Hospital Pedro II, no Rio de Janeiro, uma clínica humanizada com pacientes psicóticos. Seu trabalho com ateliês de pintura e escultura, como meio de expressão simbólica do inconsciente, tornou-se referência mundial. Mesmo sem ser freudiana ortodoxa, Nise incorporou o espírito da escuta analítica, respeitando o universo interno do sujeito além da loucura.

No campo literário, escritores como Clarice Lispector, João Guimarães Rosa e Caio Fernando Abreu fizeram da linguagem poética uma forma de falar do inconsciente. Em seus personagens e tramas, vemos a repetição, a pulsão, a angústia e o silêncio que Freud tão bem descreveu. A psicanálise, assim, tornou-se um espírito presente na cultura brasileira, mesmo onde não se nomeava.

Atualmente, o Brasil é um dos países com maior número de psicanalistas do mundo. Existem diversas linhas, escolas, tradições e disputas internas. Há os freudianos clássicos, os lacanianos, os kleinianos, os winnicottianos, os bionianos. A pluralidade é viva, fértil, complexa. Há analistas nas universidades, nos consultórios, nos hospitais, nas comunidades, nos CAPS e nos centros de escuta popular. A psicanálise se abriu também para questões de gênero, raça, classe e espiritualidade, sem perder o rigor da clínica nem o compromisso com o inconsciente.

O Brasil escuta Freud com o ouvido do corpo, do samba, da dor e da alegria. Aqui o divã pulsa junto com o tambor. O inconsciente tropical dança com o recalcado europeu. A psicanálise se reinventa na escuta das vozes brasileiras, entre becos, bibliotecas, orixás e poetas.

A palavra que cura atravessa as fronteiras. Freud vive no Brasil não como um dogma, mas como um convite à escuta, à reflexão e ao desejo de conhecer a verdade que habita cada um de nós.

Referências bibliográficas:

  • Rocha, Heloisa Caldas. A Psicanálise no Brasil: Uma História Social. Jorge Zahar Editor, 2004

  • Birman, Joel. Freud e a Cultura: Uma História do Inconsciente. Companhia das Letras, 1992

  • Roudinesco, Élisabeth. Jacques Lacan: Esboço de uma Vida, História de um Sistema de Pensamento. Zahar, 1998

  • Marcondes, Durval. Psicanálise e Higiene Mental. Edusp, 1940

  • Coda, Benedito Nunes. Psicanálise e Literatura no Brasil. UFPA, 1999

  • Bastide, Roger. O Sagrado Selvagem. Edusp, 1992

  • Silva, Nise da. Imagens do Inconsciente. Alhambra, 1981

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Kierkegaard: O Filósofo da Angústia e da Liberdade

O Pensador que Desnudou a Existência No português do Brasil, a pronúncia mais comum e aceita do nome do filósofo Søren Kierkegaard é:  “Sôren Quírquegaard” Søren : o “ø” dinamarquês soa como o “ô” fechado, então vira “Sô-ren”. Kierkegaard : costuma ser simplificado para “Quírquegaard” (o “d” final geralmente não é pronunciado, porque no dinamarquês original é quase mudo). Na Dinamarca, a pronúncia é bem diferente, algo como “Sôrren Kiérkegô” , mas no Brasil a adaptação fonética acabou consolidando o Sôren Quírquegaard . Søren Kierkegaard é um daqueles nomes que atravessam o tempo como um eco incômodo. Nascido em Copenhague, Dinamarca, em 1813, e falecido em 1855, aos 42 anos, ele viveu pouco, mas deixou uma obra que continua a desafiar a modernidade. Falar de Kierkegaard é mergulhar no terreno da angústia, da fé e da subjetividade, em um caminho que o torna precursor do existencialismo e ainda hoje essencial para compreender as crises do ser humano contemporâneo . A fil...

Erik Erikson: Reflexões sobre Identidade, Vida e Psicanálise

Erik Erikson : Reflexões sobre Identidade, Vida e Psicanálise Falar de Erik Erikson é falar de um homem cuja própria vida já parecia anunciar sua obra. Nascido em Frankfurt, em 1902, filho de mãe dinamarquesa judia e de um pai biológico ausente, cresceu cercado por um sentimento de estranhamento e de busca. Quem sou eu? De onde vim? Questões que qualquer um de nós carrega, mas que, nele, ganharam uma densidade existencial que se transformaria em pensamento científico e clínico. Freud afirmava que “as experiências infantis são a matriz de nossa vida futura”, e não é difícil perceber que a vida de Erikson foi marcada justamente por essa herança de enigmas e ausências. A juventude e o encontro com a psicanálise Na juventude, Erikson mudou-se para Viena. Ali, encontrou Anna Freud, filha de Sigmund Freud, e mergulhou na psicanálise infantil. Esse contato não apenas moldou sua formação, mas lhe abriu os olhos para um olhar mais amplo sobre o desenvolvimento humano. Enquanto a psicanáli...

Chistes: o riso como espelho da alma

O que é o riso, senão um grito da alma travestido de leveza? Freud dizia que no chiste há sempre algo de economia psíquica, um desvio astuto do inconsciente que, por uma brecha, encontra sua forma de expressão . Não é à toa que o chiste, esse pequeno arranjo linguístico que nos arranca gargalhadas ou nos faz sorrir em silêncio, revela mais do que aparenta. No mundo acelerado, em que a fala é muitas vezes esvaziada, os chistes emergem como faíscas de verdade. São lampejos que condensam desejo, crítica e inconsciente em um instante . Este artigo convida o leitor a mergulhar nesse território, onde a psicanálise, a filosofia e a vida cotidiana se encontram no jogo de palavras e no prazer da transgressão. Etimologia e significado A palavra “ chiste ” vem do alemão Witz e do latim cistus , associada à ideia de agudeza, espírito e sagacidade. Em português, ganhou a conotação de graça verbal, jogo de palavras ou trocadilho inteligente. Mas reduzir o chiste a uma piada simplória é comet...

A Psicanálise e a Tradição Judaica: Reflexões Pessoais

A Psicanálise e a Tradição Judaica: Reflexões Pessoais Sempre me intrigou a maneira como duas tradições aparentemente tão distantes, a psicanálise e a Torá , dialogam em silêncio . Freud abriu as portas da alma humana para o inconsciente, enquanto a Torá, com seus relatos antigos e sua poesia simbólica, já narrava, há milênios, os dilemas internos do homem. Quando mergulho nesses dois universos, sinto que ambos falam da mesma coisa: da nossa fragilidade, da nossa culpa, do desejo que nos move e do mistério que nos habita . Freud dizia que “o Eu não é senhor em sua própria casa”. Essa frase ecoa em mim quando penso em Adão e Eva, escondendo-se após comer do fruto proibido . O primeiro pecado não é apenas teológico, mas psicanalítico: é o surgimento da vergonha, da castração, da consciência de que há algo que nos escapa . A Torá mostra, em sua primeira narrativa, que não somos plenamente donos de nós mesmos, e a psicanálise traduz isso em termos clínicos . Nietzsche, ao criticar a m...

O que é Raiva, Ódio, Mágoa, Ressentimento e Alegria na Visão Psicanalítica

O que é Raiva, Ódio, Mágoa, Ressentimento e Alegria na Visão Psicanalítica Em nosso cotidiano, frequentemente confundimos emoções como raiva, ódio, mágoa, ressentimento e alegria. Embora possam parecer semelhantes, cada uma delas possui características distintas que influenciam profundamente nosso comportamento e bem-estar. A psicanálise, fundada por Sigmund Freud, oferece uma perspectiva única para compreender essas emoções, explorando suas origens, manifestações e impactos na psique humana. Neste artigo, vamos analisar cada uma dessas emoções sob a ótica psicanalítica, buscando entender suas nuances e implicações. Raiva: A Primeira Reação à Frustração A raiva é uma emoção primária, geralmente desencadeada por frustrações ou ameaças percebidas. Freud a associava a uma resposta instintiva do ego frente a situações que desafiam seu equilíbrio. Segundo ele, a raiva pode ser uma defesa contra sentimentos de impotência ou humilhação . Em sua obra "O Mal-Estar na Civilização",...

Atravessar o fantasma na psicanálise lacaniana: o encontro com a falta e a liberdade do desejo

Atravessar o fantasma na psicanálise lacaniana: o encontro com a falta e a liberdade do desejo Você já parou para pensar que muito do que chamamos de vida é guiado por um roteiro invisível? Lacan chamou esse roteiro de fantasma. É uma cena interna, quase um teatro silencioso, que dá sentido ao nosso desejo e ao nosso sofrimento. Mas o que acontece quando percebemos que esse teatro não é a vida real, e que somos mais do que o personagem que atuamos? É aqui que entra um dos conceitos mais provocativos da psicanálise lacaniana: atravessar o fantasma. Essa é a experiência em que o sujeito se separa da ilusão que sustenta suas repetições e aceita a falta como algo constitutivo, não para eliminá-la, mas para lidar com ela de forma criativa e responsável. O que é o fantasma para Lacan Na teoria lacaniana, o fantasma é a estrutura imaginária que organiza o desejo . Ele é formado pelas marcas do inconsciente , pelas experiências com o outro e pelas perdas iniciais que moldam nossa subjetiv...

Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921), do psicanalista Freud: Você é real quando está na multidão?

Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921), do psicanalista Freud: Você é real quando está na multidão? Você já parou para pensar se o “eu” que acredita ser tão sólido e autônomo não se dilui quando entra numa multidão? Será que sua liberdade é genuína, ou um produto da força silenciosa do grupo? Em Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921), Freud mergulha na alma coletiva e revela o que acontece com o indivíduo quando ele se transforma numa parte de algo maior, um organismo que pulsa, sente e age por si só . O que Freud queria que entendêssemos é que, na massa, o sujeito muda, se perde e se encontra de formas inesperadas . Este artigo vai desvendar os mecanismos inconscientes que moldam essa transformação, abrindo uma porta para refletirmos sobre o nosso próprio lugar na sociedade contemporânea. O que é “ Psicologia das Massas e Análise do Eu ”? Freud escreve essa obra para investigar o fenômeno das multidões , seu poder e sua complexidade. Ele parte do princípio de que o...