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A Psicanálise e a Tradição Judaica: Reflexões Pessoais

A Psicanálise e a Tradição Judaica: Reflexões Pessoais
A Psicanálise e a Tradição Judaica: Reflexões Pessoais

Sempre me intrigou a maneira como duas tradições aparentemente tão distantes, a psicanálise e a Torá, dialogam em silêncio. Freud abriu as portas da alma humana para o inconsciente, enquanto a Torá, com seus relatos antigos e sua poesia simbólica, já narrava, há milênios, os dilemas internos do homem. Quando mergulho nesses dois universos, sinto que ambos falam da mesma coisa: da nossa fragilidade, da nossa culpa, do desejo que nos move e do mistério que nos habita.

Freud dizia que “o Eu não é senhor em sua própria casa”. Essa frase ecoa em mim quando penso em Adão e Eva, escondendo-se após comer do fruto proibido. O primeiro pecado não é apenas teológico, mas psicanalítico: é o surgimento da vergonha, da castração, da consciência de que há algo que nos escapa. A Torá mostra, em sua primeira narrativa, que não somos plenamente donos de nós mesmos, e a psicanálise traduz isso em termos clínicos.

Nietzsche, ao criticar a moral, lembrava que o homem é constantemente atravessado por forças que tenta domesticar. Não é exatamente o que vemos em Abraão, Jacó ou Moisés, figuras divididas entre obediência e resistência, fé e angústia? A psicanálise, nesse sentido, não contradiz a Torá, mas a relê em outra chave. Ambas são espelhos que devolvem ao homem sua condição paradoxal: livre e prisioneiro, desejante e culpado.

Fernando Pessoa escreveu: “tudo vale a pena se a alma não é pequena”. E eu me pergunto: não seria esse o convite da Torá? A ampliação da alma, não como uma expansão narcísica, mas como jornada espiritual, onde cada mandamento, cada narrativa, é uma convocação para que eu não me conforme com uma vida estreita. A psicanálise também convida à ampliação: não da alma em termos religiosos, mas do campo da consciência, onde o analisando pode reconhecer seus afetos mais recalcados e, ao nomeá-los, libertar-se.

Lacan dizia que “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”. Esse insight se conecta de forma impressionante ao judaísmo, pois a Torá é, essencialmente, texto, palavra, letra. O judaísmo é uma religião de interpretação infinita, de midrash, de comentários sobre comentários. O analista faz algo semelhante: escuta, interpreta, abre frestas no que parecia fechado. No fundo, tanto o rabino que comenta a Torá quanto o analista que devolve uma interpretação operam no mesmo território: o da palavra como reveladora do oculto.

Mas há algo que não podemos esquecer: tanto a psicanálise quanto a Torá exigem coragem. Kierkegaard falava do salto da fé, esse movimento que rompe com a segurança do racional para abraçar o paradoxo. Na clínica, esse salto aparece quando o paciente aceita olhar para si mesmo sem máscaras. É arriscado, dói, mas é libertador. Pablo Neruda, em sua autobiografia, nos lembra: “confesso que vivi”. E eu complemento: confesso que sonhei, que reprimi, que me culpei, mas também que busquei me tornar alguém capaz de transformar dor em palavra, silêncio em sentido.

A psicanálise, portanto, é um deserto moderno, onde o sujeito caminha entre sintomas como se fossem dunas, até encontrar sua própria travessia. A Torá já narrava esse deserto como cenário de revelação: quarenta anos para que um povo entendesse que não basta sair do Egito, é preciso tirar o Egito de dentro de si. O inconsciente, talvez, seja nosso Egito interno, cheio de fardos, memórias e fantasmas que nos escravizam.

Provocativamente, ouso dizer: a psicanálise e a Torá são irmãs distantes. Uma nasceu nos desertos do Oriente, outra nos consultórios vienenses. Uma fala com linguagem simbólica, a outra com conceitos clínicos. Mas ambas nos empurram para a mesma direção: não se vive sem interpretação. Quem não interpreta a si mesmo corre o risco de ser estrangeiro em sua própria alma.

Conclusão

Essas reflexões não são respostas fechadas, mas convites. Assim como a Torá nunca se esgota em uma leitura e a psicanálise nunca se encerra em uma única sessão, também minha jornada é feita de revisões, de idas e vindas, de interpretações que se abrem como novas portas. No fundo, talvez não haja diferença entre o que chamo de fé e o que chamo de análise: ambas me lembram que viver é arriscar-se a escutar a verdade, mesmo quando ela não é agradável.

E aqui fica minha provocação: quantos de nós estamos realmente dispostos a interpretar a própria vida, ou preferimos seguir como espectadores distraídos, temendo encarar as palavras que poderiam nos libertar?

Referências bibliográficas

  • Freud, S. (1923). O Ego e o Id. Imago.

  • Lacan, J. (1966). Escritos. Zahar.

  • Nietzsche, F. (1887). Genealogia da Moral. Companhia das Letras.

  • Kierkegaard, S. (1843). Temor e Tremor. Vozes.

  • Pessoa, F. (1934). Mensagem. Ática.

  • Neruda, P. (1974). Confesso que Vivi. Difel.

  • A Torá (Pentateuco). Editora Sêfer.

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