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A Teoria do Inconsciente em Psicanálise

A Teoria do Inconsciente em Psicanálise Etimologicamente, a palavra “inconsciente” vem do latim in- (não) + conscientia (conhecimento). Literalmente, algo que não é conhecido. Desde sua origem, ela carrega a tensão entre o saber e o oculto. Essa tensão ilumina o núcleo da psicanálise que é a existência de processos psíquicos que moldam nosso pensar, sentir e agir sem que tenhamos acesso direto. Na psicanálise de Freud, o inconsciente emerge como descoberta revolucionária, fundamental para entender a subjetividade. Freud observou, em pacientes histéricas e em fenômenos como atos falhos, sonhos, sintomas, que existiam conteúdos psíquicos ativos, recalcados, que exerciam pressão contínua sobre a consciência ( Ipa World ). Quando, na obra “O Inconsciente” (1915), ele defendeu que sem esse conceito seria impossível explicar vários fenômenos mentais, ele estava estabelecendo a metapsicologia do aparelho psíquico ( Ipa World ). A topografia freudiana divide a mente em inconsciente, pré‑...

Jacques Lacan - Os Complexos Familiares (1938)


Os Complexos Familiares (1938)

Na alvorada de sua jornada como analista, Lacan escreve com o vigor do jovem que já pressente o abismo. “Os Complexos Familiares na Formação do Indivíduo” é um texto inaugural, onde a psicanálise ainda bebe da fonte freudiana, mas começa a desenhar os contornos de uma nova cartografia do psiquismo. Lacan já intui que o drama humano não se encerra no biológico, nem no social, mas se escreve na linguagem.

Aqui, ele localiza três complexos fundamentais que organizam o sujeito na infância: o complexo de desmame, o complexo de intrusão e o complexo de Édipo. O primeiro marca o corte da fusão simbiótica com o corpo materno. A criança, arrancada do seio, descobre que o desejo é falta. Esse desmame é a primeira morte, a primeira ausência que estrutura o sujeito. A oralidade cede lugar ao significante. A criança, ao ser separada do seio, encontra-se diante da palavra.

No segundo, o complexo de intrusão, a entrada de um terceiro elemento no espaço dual com a mãe um irmão, por exemplo irrompe como figura de rivalidade. Lacan já prenuncia aqui a importância do Outro, este que não é apenas um ser exterior, mas uma função simbólica. A criança se vê dividida entre o amor e o ódio, entre o espelho narcísico e a ameaça de castração. O narcisismo é ferido, e é nesse espelho quebrado que começa a se formar o Eu, não como essência, mas como imagem alienada.

Por fim, no complexo de Édipo, o pai aparece não apenas como rival, mas como nome, como lei. É aqui que o interdito se instala, permitindo à criança renunciar à mãe e se inscrever no campo do desejo simbólico. Lacan propõe que o pai não é apenas um indivíduo, mas uma função: a do Nome-do-Pai. A metáfora paterna opera como o significante que substitui o desejo da mãe, dando ao sujeito um lugar na cadeia simbólica.

Esses três complexos, longe de serem apenas etapas cronológicas, são estruturantes. Eles marcam o lugar onde o sujeito se separa do biológico e entra na ordem da linguagem. Já nesse texto, Lacan fala de um "romance familiar do neurótico", antecipando a noção de fantasma que anos mais tarde ele aprofundará. O sujeito é aquele que se constitui através de uma montagem ficcional de sua origem, enredado nos fios da narrativa familiar.

Os Complexos Familiares são, portanto, o alicerce sobre o qual Lacan vai construir toda a sua teoria dos registros. Aqui já ressoam os primeiros acordes do que mais tarde se tornará Real, Simbólico e Imaginário. Não é por acaso que Lacan, mesmo décadas depois, jamais abandonaria esse texto. Ele é o embrião daquilo que se desdobrará em seminários, escritos e topologias. Aqui, o sujeito da psicanálise nasce como fenda, como resto, como efeito da linguagem sobre o corpo desejante.

Referências bibliográficas:

  1. LACAN, Jacques.
     “Os Complexos Familiares na Formação do Indivíduo.”
     In: Outros Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
     - Este é o texto original em que Lacan apresenta, em 1938, seu pensamento sobre os complexos estruturantes da subjetividade, antes mesmo de iniciar os seminários. Foi escrito para a Enciclopédia Francesa.

  2. MILLER, Jacques-Alain.
     "Nota sobre os Complexos Familiares."
     In: Outros Escritos, de Jacques Lacan. Zahar, 2003.
     - Miller oferece nesta nota uma contextualização da importância histórica e conceitual do texto lacaniano.

  3. ROUDINESCO, Élisabeth.
     Jacques Lacan: Esboço de uma Vida, História de um Sistema de Pensamento. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.
     - A biógrafa apresenta o momento em que Lacan escreve este texto e sua posição no campo psiquiátrico francês da época. É útil para entender o pano de fundo intelectual da obra.

  4. NASSIF, Jorge.
     "Lacan: o Nascimento de uma Clínica." São Paulo: Escuta, 2005.
     - Esse livro examina como o texto dos complexos familiares inaugura uma virada na clínica, antecipando a introdução da linguagem como eixo do sujeito.

  5. SAFATLE, Vladimir.
     "Lacan: Esquerda Lacaniana." São Paulo: Boitempo, 2022.
     - Embora mais voltado à leitura política do Lacan maduro, Safatle retorna ao texto de 1938 para mostrar como já ali aparece o germe da crítica ao biologismo e ao sociologismo simplista.

  6. SANTIAGO, Laura M.
     "A Função Simbólica dos Complexos Familiares."
     In: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, 2010.
     - Artigo acadêmico que relê o texto com as lentes da teoria dos três registros: Real, Simbólico e Imaginário.

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