Pular para o conteúdo principal

Jacques Lacan - O Discurso da Universidade: Quando o saber se põe a serviço do Mestre, nasce uma máquina de domesticar sujeitos


O Discurso da Universidade

Quando o saber se põe a serviço do Mestre, nasce uma máquina de domesticar sujeitos.

Jacques Lacan propõe quatro discursos: do Mestre, da Universidade, da Histeria e do Analista. Cada um expressa uma maneira de organizar as relações entre saber, poder, gozo e sujeito. São fórmulas lógicas, mas também metáforas vivas que descrevem a circulação dos lugares e posições psíquicas dentro do laço social.

O Discurso da Universidade é a engrenagem onde o saber reina, mas com uma obediência oculta ao poder. Sua fórmula:

S₂ → a
S₁ ↓ $

Onde:

  • S₂: saber - conhecimento sistematizado, doutrinas, teorias, ciências.

  • a: objeto pequeno a - o objeto causa do desejo, o resto do gozo.

  • S₁: significante-mestre - autoridade que institui o saber.

  • $: sujeito dividido - aquele que, no fundo, está em falta, mas é mantido alienado sob a ordem do saber.

Neste discurso, o Saber fala. E sua fala parece neutra, objetiva, científica. Mas por trás do saber, há um Mestre oculto - um significante que dá o tom e impõe o que pode ou não ser reconhecido como verdadeiro.

O Discurso da Universidade é a alma da tecnocracia, da burocracia, da academia que se autorreferencia. Ele produz sujeitos formatados, que se pensam autônomos, mas são regulados por normas que não escolhem. A produção é o objeto a: fragmentos de gozo, efeitos de verdade que jamais se completam. O saber se multiplica, mas não emancipa - ao contrário, captura.

Lacan denuncia que este discurso reina nas instituições de ensino, nas formações profissionais, na ciência que se esquece do sujeito e no saber médico que transforma o paciente em um corpo sem fala. É a linguagem que fala sozinha, com vocabulário técnico e desumanizado, neutralizando o desejo e a angústia.

Mas, há algo de mais profundo: o sujeito dividido ($) ocupa aqui a posição de verdade. Ou seja, por trás da produção fria e controlada do saber, pulsa um sujeito em falta, alienado, sofrendo. A Universidade não reconhece esse sujeito - o esconde. E justamente por isso, o Discurso da Universidade é também o campo onde pode surgir a resistência, a histeria, ou até o analista.

Comparação com os demais discursos

  • No Discurso do Mestre, o poder domina o saber. No da Universidade, o saber comanda, mas a serviço do mestre.

  • No Discurso da Histeria, o sujeito demanda saber sobre sua divisão - é o discurso do analisante.

  • No Discurso do Analista, o objeto a comanda, provocando a fala do sujeito e colocando o saber em sua função subversiva.

Lacan e a crítica à academia

Lacan, ironicamente professor e frequentador dos espaços universitários, faz aqui uma crítica contundente: o saber que se repete sem escutar o sujeito não é emancipador, é opressor. Produz diplomas, papers, manuais - mas silencia o grito do inconsciente. Por isso, a psicanálise, enquanto discurso, não deve se confundir com a Universidade. Ela deve ocupar seu lugar de alteridade, de furo, de resto.

Em “A ciência e a verdade”, Lacan reforça: a ciência é um saber sem sujeito. A psicanálise, ao contrário, escuta o saber do sujeito, esse saber que não se sabe, que escapa à lógica formal, que pulsa no sintoma, no sonho, no lapso.

Referências bibliográficas

  1. LACAN, Jacques.
     - O Seminário, Livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.
      - Onde Lacan introduz os quatro discursos e desenvolve suas implicações clínicas e sociais.

  2. LACAN, Jacques.
     - A Ciência e a Verdade, in: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
      - Texto que aprofunda a crítica de Lacan à ciência moderna e ao saber universitário.

  3. MILLER, Jacques-Alain.
     - Os quatro discursos e a formação do analista. In: Opção Lacaniana Online.
      - Comentário detalhado sobre os discursos e suas articulações.

  4. FINK, Bruce.
     - The Lacanian Subject. Princeton: Princeton University Press, 1995.
      - Uma introdução clara aos discursos e ao papel do sujeito dividido.

  5. ŽIŽEK, Slavoj.
     - Lacan: The Silent Partners. London: Verso, 2006.
      - Aplica os discursos de Lacan à cultura contemporânea.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Kierkegaard: O Filósofo da Angústia e da Liberdade

O Pensador que Desnudou a Existência No português do Brasil, a pronúncia mais comum e aceita do nome do filósofo Søren Kierkegaard é:  “Sôren Quírquegaard” Søren : o “ø” dinamarquês soa como o “ô” fechado, então vira “Sô-ren”. Kierkegaard : costuma ser simplificado para “Quírquegaard” (o “d” final geralmente não é pronunciado, porque no dinamarquês original é quase mudo). Na Dinamarca, a pronúncia é bem diferente, algo como “Sôrren Kiérkegô” , mas no Brasil a adaptação fonética acabou consolidando o Sôren Quírquegaard . Søren Kierkegaard é um daqueles nomes que atravessam o tempo como um eco incômodo. Nascido em Copenhague, Dinamarca, em 1813, e falecido em 1855, aos 42 anos, ele viveu pouco, mas deixou uma obra que continua a desafiar a modernidade. Falar de Kierkegaard é mergulhar no terreno da angústia, da fé e da subjetividade, em um caminho que o torna precursor do existencialismo e ainda hoje essencial para compreender as crises do ser humano contemporâneo . A fil...

Erik Erikson: Reflexões sobre Identidade, Vida e Psicanálise

Erik Erikson : Reflexões sobre Identidade, Vida e Psicanálise Falar de Erik Erikson é falar de um homem cuja própria vida já parecia anunciar sua obra. Nascido em Frankfurt, em 1902, filho de mãe dinamarquesa judia e de um pai biológico ausente, cresceu cercado por um sentimento de estranhamento e de busca. Quem sou eu? De onde vim? Questões que qualquer um de nós carrega, mas que, nele, ganharam uma densidade existencial que se transformaria em pensamento científico e clínico. Freud afirmava que “as experiências infantis são a matriz de nossa vida futura”, e não é difícil perceber que a vida de Erikson foi marcada justamente por essa herança de enigmas e ausências. A juventude e o encontro com a psicanálise Na juventude, Erikson mudou-se para Viena. Ali, encontrou Anna Freud, filha de Sigmund Freud, e mergulhou na psicanálise infantil. Esse contato não apenas moldou sua formação, mas lhe abriu os olhos para um olhar mais amplo sobre o desenvolvimento humano. Enquanto a psicanáli...

Chistes: o riso como espelho da alma

O que é o riso, senão um grito da alma travestido de leveza? Freud dizia que no chiste há sempre algo de economia psíquica, um desvio astuto do inconsciente que, por uma brecha, encontra sua forma de expressão . Não é à toa que o chiste, esse pequeno arranjo linguístico que nos arranca gargalhadas ou nos faz sorrir em silêncio, revela mais do que aparenta. No mundo acelerado, em que a fala é muitas vezes esvaziada, os chistes emergem como faíscas de verdade. São lampejos que condensam desejo, crítica e inconsciente em um instante . Este artigo convida o leitor a mergulhar nesse território, onde a psicanálise, a filosofia e a vida cotidiana se encontram no jogo de palavras e no prazer da transgressão. Etimologia e significado A palavra “ chiste ” vem do alemão Witz e do latim cistus , associada à ideia de agudeza, espírito e sagacidade. Em português, ganhou a conotação de graça verbal, jogo de palavras ou trocadilho inteligente. Mas reduzir o chiste a uma piada simplória é comet...

A Psicanálise e a Tradição Judaica: Reflexões Pessoais

A Psicanálise e a Tradição Judaica: Reflexões Pessoais Sempre me intrigou a maneira como duas tradições aparentemente tão distantes, a psicanálise e a Torá , dialogam em silêncio . Freud abriu as portas da alma humana para o inconsciente, enquanto a Torá, com seus relatos antigos e sua poesia simbólica, já narrava, há milênios, os dilemas internos do homem. Quando mergulho nesses dois universos, sinto que ambos falam da mesma coisa: da nossa fragilidade, da nossa culpa, do desejo que nos move e do mistério que nos habita . Freud dizia que “o Eu não é senhor em sua própria casa”. Essa frase ecoa em mim quando penso em Adão e Eva, escondendo-se após comer do fruto proibido . O primeiro pecado não é apenas teológico, mas psicanalítico: é o surgimento da vergonha, da castração, da consciência de que há algo que nos escapa . A Torá mostra, em sua primeira narrativa, que não somos plenamente donos de nós mesmos, e a psicanálise traduz isso em termos clínicos . Nietzsche, ao criticar a m...

O que é Raiva, Ódio, Mágoa, Ressentimento e Alegria na Visão Psicanalítica

O que é Raiva, Ódio, Mágoa, Ressentimento e Alegria na Visão Psicanalítica Em nosso cotidiano, frequentemente confundimos emoções como raiva, ódio, mágoa, ressentimento e alegria. Embora possam parecer semelhantes, cada uma delas possui características distintas que influenciam profundamente nosso comportamento e bem-estar. A psicanálise, fundada por Sigmund Freud, oferece uma perspectiva única para compreender essas emoções, explorando suas origens, manifestações e impactos na psique humana. Neste artigo, vamos analisar cada uma dessas emoções sob a ótica psicanalítica, buscando entender suas nuances e implicações. Raiva: A Primeira Reação à Frustração A raiva é uma emoção primária, geralmente desencadeada por frustrações ou ameaças percebidas. Freud a associava a uma resposta instintiva do ego frente a situações que desafiam seu equilíbrio. Segundo ele, a raiva pode ser uma defesa contra sentimentos de impotência ou humilhação . Em sua obra "O Mal-Estar na Civilização",...

Atravessar o fantasma na psicanálise lacaniana: o encontro com a falta e a liberdade do desejo

Atravessar o fantasma na psicanálise lacaniana: o encontro com a falta e a liberdade do desejo Você já parou para pensar que muito do que chamamos de vida é guiado por um roteiro invisível? Lacan chamou esse roteiro de fantasma. É uma cena interna, quase um teatro silencioso, que dá sentido ao nosso desejo e ao nosso sofrimento. Mas o que acontece quando percebemos que esse teatro não é a vida real, e que somos mais do que o personagem que atuamos? É aqui que entra um dos conceitos mais provocativos da psicanálise lacaniana: atravessar o fantasma. Essa é a experiência em que o sujeito se separa da ilusão que sustenta suas repetições e aceita a falta como algo constitutivo, não para eliminá-la, mas para lidar com ela de forma criativa e responsável. O que é o fantasma para Lacan Na teoria lacaniana, o fantasma é a estrutura imaginária que organiza o desejo . Ele é formado pelas marcas do inconsciente , pelas experiências com o outro e pelas perdas iniciais que moldam nossa subjetiv...

Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921), do psicanalista Freud: Você é real quando está na multidão?

Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921), do psicanalista Freud: Você é real quando está na multidão? Você já parou para pensar se o “eu” que acredita ser tão sólido e autônomo não se dilui quando entra numa multidão? Será que sua liberdade é genuína, ou um produto da força silenciosa do grupo? Em Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921), Freud mergulha na alma coletiva e revela o que acontece com o indivíduo quando ele se transforma numa parte de algo maior, um organismo que pulsa, sente e age por si só . O que Freud queria que entendêssemos é que, na massa, o sujeito muda, se perde e se encontra de formas inesperadas . Este artigo vai desvendar os mecanismos inconscientes que moldam essa transformação, abrindo uma porta para refletirmos sobre o nosso próprio lugar na sociedade contemporânea. O que é “ Psicologia das Massas e Análise do Eu ”? Freud escreve essa obra para investigar o fenômeno das multidões , seu poder e sua complexidade. Ele parte do princípio de que o...